terça-feira, 2 de outubro de 2007

Resenha crítica: Dois Irmãos, de Milton Hatoum

Dois Irmãos
Eu não a vi morrer, eu não quis vê-la morrer. Mas alguns dias antes de sua morte, ela deitada na cama de uma clínica, soube que ergueu a cabeça e perguntou em árabe para que só a filha e a amiga quase centenária entendessem (e para que ela mesma não se traísse):”meus filhos já fizeram as pazes?”. Repetiu a pergunta com a força que lhe restava, com a coragem que a mãe aflita encontra na hora da morte. Ninguém respondeu. Então o rosto quase sem rugas de Zana desvaneceu; ela virou a cabeça para o lado, à procura da única janelinha na parede cinzenta, onde se apagava um pedaço do céu crepuscular.



Caim e Abel. Esaú e Jacó. Pedro e Paulo. Omar e Yaqub. A primeira dupla desta lista, a mais conhecida, integra uma das histórias mais antigas de desavenças entre irmãos, contada no livro do Gênesis da Bíblia e que resultou, como sabemos, na morte de Abel nas mãos de Caim. Esaú e Jacó, irmãos gêmeos e também personagens bíblicos, inspiraram Guy de Maussapant, assim como Machado de Assis, que nos relatou a trajetória de Paulo e de Pedro, estes, que iniciaram, ainda no ventre, uma disputa que seria eterna. Da mesma forma, Omar e Yaqub se odeiam, e é a eles que Zana, a mãe, se refere no trecho citado acima, que é, ao mesmo tempo, o início e o final da saga de Dois Irmãos, o segundo romance do escritor manauara Milton Hatoum, em reedição econômica lançado recentemente pelas Cia das Letras. A história se passa em Manaus na primeira metade do século 20, beliscando o início da ditadura nos anos 60, quando o avanço militar passa a ocupar a já cosmopolita capital do Amazonas. Manaus é, aliás, um grande personagem do romance, descrita quase sempre além das suas superfícies; nas suas entranhas, vilarejos, ruelas, rios e mangues; nas suas praças, na vida dos seus habitantes, nas mudanças que todo desenvolvimento desordenado acarreta às grandes cidades. Este é o cenário em que Hatoum nos apresenta a trajetória de imigrantes árabes como Galib e sua filha Zana, que se casa com o também imigrante Halim, e da família que os dois irão formar: os gêmeos Yaqub e Omar, personagens centrais da história; Rânia, a filha mais nova, que estabelece uma relação de amor indistinto com os irmãos; Domingas, a empregada índia e aquele que é o narrador, este que deixo ao leitor, descobrir por si mesmo, na construção temporal que cada página propiciará. A narrativa de Hatoun, influenciada sobretudo por Flaubert, Balzac e Faulkner, constrói uma trama em que o “contar uma história” é cercado por filigranas poéticas. O enredo trata, basicamente, do duelo fraternal, mas envolto por inúmeras subjetividades, como a nostalgia de Halim, que apaixonado pela esposa, perde a atenção dela para os filhos, sobretudo Omar, boêmio, impetuoso e sempre protegido por Zana. Rânia, a filha mais nova, dedicada à família e que toma às rédeas dos negócios. Yaqub, tímido e conservador, acaba se tornando mais independente, e se ausenta da vida familiar e assim do cenário da história nos momentos em que se auto-afirma, como na primeira viagem que faz, ainda adolescente para o Líbano, supostamente para separá-lo de Omar e, posteriormente, quando decide estudar em São Paulo - se negando a ter qualquer ajuda da família - onde se torna um reconhecido engenheiro. Há ainda o narrador, como um observador presente e atento, e, ao mesmo tempo, com um certo distanciamento que lhe permite um olhar analítico sobre o enredamento da história que nos conta. Hatoun percorre um trajeto na sua narrativa em que as tenções se apresentam sem que haja uma necessidade de dissipá-las. As histórias não fluem no texto de forma que devam apresentar resoluções. Ficam espaços abertos, mas não há falta. Ficam possibilidades e não certezas.



Milton Hautom, filho de pai libanês muçulmano e de mãe brasileira -mas filha de mulçumano-, nasceu em Manaus, em 1952. Estudou Arquitetura na Universidade de São Paulo. É professor de literatura na Universidade Federal do Amazonas e professor convidado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Relato de um Certo Oriente, seu primeiro romance (Prêmio Jabuti 1990), foi publicado nos Estados Unidos, na França, na Itália, na Alemanha, em Portugal e na Suíça; entre outros países. Dois Irmãos é o seu segundo romance e, da mesma forma, foi publicado em vários países, rompendo mais uma fronteira em 2003, quando foi traduzido para o árabe.




gê cesar de paula

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