Émile Zola (1840-1902) foi mais que um escritor dito, naturalista. Zola foi aquilo que poderíamos chamar de um observador e militante atento do seu tempo. Em “J’Accuse” (Eu acuso), um artigo em formato de carta endereçada ao presidente da república e publicado no jornal L’Aurore em 13 de janeiro de 1898, colocou abaixo toda a
credibilidade do Judiciário do Conselho de Guerra francês que condenou injustamente o capitão do exército francês de origem judaica Alfred Dreyfus de traição. O artigo inaugurou uma discussão que extrapolaria o território francês e avançaria por muitos anos, naquilo que ficou conhecido como o Caso Dreyfus.
Mas o propósito desta postagem é lembrar de um Émile Zola, quase quatro décadas antes da publicação de J’Accuse, um jovem jornalista e crítico de arte, engajado em defender e fazer entender aos conservadores, que uma nova leva de artistas e um movimento novo estava surgindo no cenário das artes plásticas. Ingres e Delacroix estavam mortos. Pissarro, Cézanne, Manet, Degas entre outros, estavam rompendo as barreiras do academicismo naquilo que mais tarde ficou conhecido como Impressionismo. Para lembrar desse Zola mordaz e irônico, retiro do livro “A Batalha do Impressionismo”, edição da Paz e Terra, a carta
Ao Sr. F. Magnard, Redator do Figaro
Meu caro colega,
Peço-lhe a gentileza de fazer inserir estas poucas linhas de retificação.
Trata-se de um de meus amigos de infância, de um jovem pintor cujo talento vigoroso e pessoal estimo de maneira especial.
O senhor recortou, em Europe, um trecho de prosa onde o assunto era um tal sr. Sésame, que teria exposto, em 1863, no Salão dos Recusados(*), “dois pés de porco em cruz”, e que neste ano teria tido recusada uma outra tela intitulada "O grogue de vinho".
Confesso ao senhor que tive uma certa dificuldade para reconhecer, sob a máscara que haviam colado em seu rosto, um de meus camaradas de colégio, o sr. Paul Cézanne, que não tem nenhum pé de porco em sua bagagem artística, pelo menos até este momento. Faço esta restrição, pois não vejo a razão de não se pintarem pés de porco como se pintam melões e cenouras.
Com efeito, o sr. Cézanne teve, juntamente com muitos outros, duas telas recusadas este ano: O grogue de vinho e Embriaguez. O sr. Arnold Mortier resolveu divertir-se com esses quadros e descreveu-os como esforços de imaginação que correspondem bem ao seu espírito. Sei muito bem que tudo isso não passa de uma agradável brincadeira, com a qual não devo me preocupar. Mas o que posso fazer? Nunca pude compreender este singular método de crítica que consiste em zombar de confiança, em condenar e ridicularizar algo que nem mesmo se viu. Faço, pelo menos, questão de dizer que as descrições do sr. Arnold Mortier são inexatas.
Até o senhor, meu caro colega, acrescenta em boa-fé o seu grão de sal: o senhor está “convencido de que o autor pode ter colocado em seus quadros uma idéia filosófica”. Esta é uma convicção deslocada. Se o senhor quiser encontrar artistas filósofos, dirija-se aos alemães, ou até mesmo a nossos belos sonhadores franceses. Mas saiba que os pintores analistas, e a jovem escola que tenho a honra de defender, contentam-se com as vastas realidades da natureza.
Aliás, depende somente do sr. de Nieuwerkerke a decisão de que "O grogue de vinho" e "Embriaguez" sejam exposto. O senhor deve saber que um grande número de pintores acaba de assinar uma petição pedindo o restabelecimento do Salão dos Recusados. Talvez um dia o sr. Arnold Mortier tenha a oportunidade de ver as telas que julgou tão levianamente. Acontecem tantas coisas estranhas...
É verdade que o sr. Paul Cézanne nunca se chamará sr. Sésame, e que, haja o que houver, ele nunca será o autor de “dois pés de porco em cruz”.
Seu colega devotado.
Emile Zola
(*) -Nota minha - O Salão de Artes era uma tradição na França desde o século 17. Em 1863 por ocasião de protestos de muitos artistas e por determinação do Imperador Napoleão III, foi instituído o “Salão dos Recusados” como uma exposição paralela que passaria a receber posteriormente, muitos dos artistas impressionistas. O Salão dos Recusados acabou se tornando assim, importante marco para um novo desenvolvimento pictórico que desembocaria na arte moderna.
(lá em cima, Zola retratado por Manet)
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4 comentários:
Muito bom o post, Cesar.
Grande abraço.
Obrigado caro Antonio.
Grande abraço.
Puxa, eu estava pesquisando sobre as cartas do Zola quando vi o teu blog. Muito boa a introdução mencionando o "J'Accuse". Visitarei mais vezes o seu blog.
Obrigado Renato por visitar este empório.
Abraço.
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