Esta postagem não está referenciada a uma data redonda. Pelo menos não exatamente redonda. Ocorreu há pouco mais de 20 anos. Exatamente, seriam 20 anos, dois meses e cinco dias. Em 15 de março de 1994 o Jornal Nacional teve que ceder preciosos minutos para cumprir uma ordem judicial de direito de resposta à Leonel Brizola. Um momento histórico, sobretudo se pensarmos que os abusos da grande e oligopolizada mídia, continuam a cometer os abusos que atrasam o nosso processo democrático e que tornam tão importante a discussão sobre a Regulação da Mídia. Cid Moreira, a grande voz do dono, foi o responsável pela narração. Abaixo o vídeo e mais abaixo o texto de Fernando Brito contando os bastidores da ação, publicado no Tijolaço no dia da data redonda, dois meses e cinco dias atrás.
por Fernando Brito, no Tijolaço
Hoje, se completam 20 anos do dia em que Cid Moreira, com seu ar afetado e
seus cabelos brancos (nem os muito velhos se lembram dele de cabelos pretos…),
começou a ler o histórico direito de resposta de Leonel Brizola no Jornal
Nacional.
Foi a penúltima vitória do guri que saiu de Carazinho para enfrentar o
mundo, um quixote gaúcho, do tempo em que os gaúchos eram quixotes e provocavam
os versos geniais do pernambucano Ascenso Ferreira: Riscando os cavalos!/Tinindo
as esporas!/Través das cochilhas!/Sai de meus pagos em louca arrancada!/— Para
que?/— Pra nada!
Durante 22, 23 anos, convivi com ele, 19 dos quais diariamente.
Praticamente formei, com ele, a minha vida adulta, pois era um garoto de 22
anos quando esse contato começou, numa reunião num apartamento na Rua Cabuçu, no
Lins de Vasconcellos, subúrbio da Zona Norte carioca.
Deste convívio, de muita coisa mantenho reserva. Sei que estava ao lado de
um mito – e via o mito nos raros instantes em que ele conseguia se despir do
personagem que poucos minutos lhe deixava viver de outra maneira.
Mas chega a hora em que estes detalhes, que antes serviriam para a intriga e
o desmerecimento político, só fazem enriquecer a trajetória de quem era, como
ele próprio dizia, “o rei do improviso”.
Porque era assim: se tinha visão estratégica, Brizola não era um calculista,
muito menos frio.
As coisas iam acontecendo e ele, certo ou errado, farejava os caminhos,
alguns exatos, outros não, mas todos coerentes.
O impacto daquele texto – minto, não do texto, mas de Brizola obrigar a Globo
a ler uma mensagem sua – também não teve nada de planejado, mas resultou do
inconformismo que ele, com seu exemplo, injetou em alguns de seus
companheiros.
Um pouco antes de sua segunda eleição, Brizola
passou a ser atacado, sistematicamente, com artigos em O Globo, escritos – ou
apenas assinados – por um certo Alcides Fonseca, um ex-deputado estadual eleito
do nada pelo PDT e que se bandeou para a oposição a Brizola e, daí, para a
poeira da história.
Por orientação do querido amigo Nilo Batista, Brizola passou a pedir, um por
um, direito de resposta em O Globo. E, ao pedir, tinha-se já de oferecer o
texto, e a tarefa me cabia, porque os anos e anos escrevendo com ele os
“tijolaços” me fizeram absorver um pouco do estilo e da alma
inconfundíveis.
Dr. Nilo começou a vencer as causas, alguns artigos foram publicados e o
“Fonsequinha” , como era chamado, foi despachado do jornal.
Já no Governo, em 1992, Brizola dá uma entrevista, dizendo que por toda a
sabotagem que a Globo fizera à Passarela do Samba, o prefeito da cidade,
Marcello Alencar deveria negar à emissora a exclusividade da transmissão do
Carnaval.
Foi o que bastou para que o jornal O Globo publicasse um editorial
violentíssimo contra Brizola – o título era ”Para Entender a Fúria de Brizola”,
acusando-o de senilidade, “declínio da saúde mental”, e por suas relações,
sempre institucionais, com o Presidente da República, Fernando Collor.
À noite, o Jornal Nacional reproduziu, na voz de Moreira, o texto
insultuoso.
Naquela noite, Brizola conversou com dois advogados: Arthur Lavigne e Carlos
Roberto Siqueira Castro, seu chefe da Casa Civil no governo estadual.
No dia seguinte, Siqueira me chamou e disse que Brizola tinha me encarregado
de fazer o texto de resposta, que teria de ser apresentado ainda naquela tarde.
Falei com ele, que se mostrou completamente cético em relação ao resultado do
pedido judicial e, como fazia quando se sentia assim, despachava o auxiliar:
“olha, Brito, você fala com o Dr. Siqueira e façam como acharem melhor.”
Lá fui eu fazer o texto: tinha que ter três minutos, não podia ter
“compensação de injúria” – isto é, devolver na mesma moeda os impropérios – e
tinha de sair rápido, porque era uma sexta-feira (7 de fevereiro) e havia prazo
judicial.
Chamei dois companheiros de velha cepa, que me auxiliavam na Assessoria de
Comunicação do Governo, o Luiz Augusto Erthal e o Ápio Gomes, para cumprirem um
dupla função: anotar o que eu ditava e “segurar” a minha “viagem”.
Porque – começo aqui as difíceis confissões, que não são um segredo porque
uma boa meia-dúzia de companheiros sabem disso – quando eu tinha de escrever
pelo Brizola, eu não escrevia, “incorporava” . Parece coisa de doido? Não, e ele
próprio sempre dizia: o bem escrito é o bem falado. E, na hora destes textos
carregados, era assim que eu fazia, ditando, falando no ritmo dele, com o milhar
de vírgulas e os períodos longos com que se expressava.
Era um exercício extenuante, massacrante, do qual não raro eu saía às
lágrimas, mal conseguindo falar, de tão embargada a voz.
Qualquer redator publicitário jogaria fora o que saía disto, e com razão.
Porque não era um texto jornalístico ou publicitário.
Era o Brizola, não eu.
Feito o primeiro texto, mandamos ao Dr. Siqueira que fez algumas correções de
bom-senso e um veto.
Eu não podia devolver o “senil” com que Marinho brindara Brizola. Mas isso eu
tinha de devolver, ah, tinha.
E aí saiu uma obra de engenharia redacional.
“Quinta-feira, neste mesmo Jornal Nacional, a pretexto de citar editorial de
‘O Globo’, fui acusado na minha honra e, pior, apontado como alguém de mente
senil. Ora, tenho 70 anos, 16 a menos que o meu difamador Roberto Marinho, que
tem 86 anos. Se é esse o conceito que tem sobre os homens de cabelos brancos,
que os use para si.”
Na verdade, eu tinha escrito “encanecidos”, mas o bom-senso do Erthal me
travou: pô, Brito, ninguém mais sabe o que é encanecido. É verdade, mas é o que
o velho teria dito.
Bem, o texto foi para o Tribunal sem que Brizola lesse o que ele estava
“dizendo” na resposta.
Foram dois anos e um mês de espera pela Justiça.
Brizola levantava a sobrancelha, cético, quando Lavigne e Siqueira Castro,
teimosos e dedicados, diziam que íamos ganhar.
Passou tanto tempo que, dos 70, Brizola já tinha 72 anos e Marinho, 88.
No final do dia 9 de março chega a notícia da vitória no Superior Tribunal de
Justiça, mas ainda havia um recurso possível e um “notificaram a Globo ou não
notificaram?”. O ceticismo, confesso, era maior que a ansiedade.
No próprio dia 15, terça da semana seguinte, quando o texto foi ao ar, não
críamos – nem eu, nem Brizola – que aquilo iria acontecer.
Tanto que nem montamos esquema algum para gravar o Jornal Nacional, senão o
de um videocassete doméstico.
E foi o que se viu e que ficou na história.
Termina o texto, toca o telefone: ‘Olha, Brito, que maravilha. Nós acertamos
o tiro no cu de um mosquito”.
E assim foi. Não fiquei aborrecido, ao contrário. Porque era nós, mesmo: era
o Brizola introjetado em mim que escrevera.
Elogio mesmo – e maior não poderia haver – foi o de Roberto Marinho, falando
ao querido amigo Neri Victor Eich, da Folha, por telefone, no mesmo dia do
terremoto:
“Que nunca mais se reproduza isso. O direito de resposta teve o tom de
Brizola.”
Teve sim.
Foi a última vitória de Brizola, em vida e em memória, despertando
consciências que não se acovardam, não se ajoelham e não gaguejam, como a dele,
a minha e a sua.
Até hoje, a não ser pelos testemunhos dos personagens desta história, a
ninguém tinha revelado estes detalhes. Faço-o agora, porque já são história e
porque só aumentam o tamanho de um homem a quem eu devo grande parte do que
sou.
Um homem que era tão grande que estar à sua sombra foi também – e é para
sempre – estar sob sua luz.
terça-feira, 20 de maio de 2014
um direito de resposta histórico
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