terça-feira, 11 de outubro de 2016

50 anos ontem à noite - irajá menezes

50 ANOS ONTEM À NOITE
por Irajá Menezes
O cochilo no banco de trás do Fusca foi interrompido quando a voz, já naturalmente tonitruante, se elevou. O motorista parecia agitado: "Airto, pegue o lápis, anote um verso que eu acabei de pensar, senão vou esquecer". No banco do carona, o percussionista do grupo abriu o porta-luvas, encontrou o proverbial papel de embrulho que socorre os poetas longe de casa e tratou de registrar as redondilhas que Geraldo, mãos no volante, lhe ditava: prepare o seu coração... pras coisas que eu vou contar... eu venho lá do sertão... e posso não lhe agradar.
(continua em "mais informações")


De volta a São Paulo, quando Theo de Barros, dias depois, entregou pronta a melodia feita para o novo poema do criador de 'Porta Estandarte', Hilton Acioli, o passageiro que acordara a tempo de ver nascer uma das mais marcantes peças de toda a música brasileira, foi dos primeiros a aprendê-la. Acioli atuava como diretor musical do trabalho de Geraldo Vandré e juntos haviam decidido que 'Disparada' seria inscrita no II Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record.
Não havia dúvida de que a composição demandava um intérprete de recursos fartos. Além da extensão vocal e da inteligência rítmica, o cantor teria que dar conta da carga dramática que o épico sertanejo em forma de canção carregava. Coisa que a novata Elis Regina sabia fazer como ninguém. O personagem principal, porém, um boiadeiro que passa por sucessivas transformações até sagrar-se cavaleiro de um "reino que não tem rei", vedava a presença de uma cantora.
Foi Hilton quem teve a ideia: Elis, não, mas o homem da dupla. Jair Rodrigues! O autor se opôs, de imediato. "Jair? Mas ele vai cantar rindo!". Vandré tinha na memória o crooner histriônico de 'O Fino da Bossa'. "Ele vai marcar o ritmo com as mãos na linha do deixa que digam, que pensem, que falem", brincava. Mas aquele não era um palpite maluco. Jair, com certa frequência, se apresentava cantando modas de viola em dupla com seu irmão. Hilton, que o vira cantar clássicos caipiras mais de uma vez, intuiu o nome certo para a tarefa. Jair preenchia todos os requisitos técnicos e artísticos e ainda trazia dentro de si uma sentimentalidade interiorana autêntica.
Num final de semana em meio aos ensaios, Hilton Acioli encontrou amigos e mostrou-lhes a novidade. Cantou 'Disparada' como havia sido concebida, rápida desde o início, em sua curiosa levada entre a catira e o xaxado. Ao final, os companheiros elogiaram. "Que melodia inspirada! Que ritmo contagiante! Que mistura de estilos inusitada!". Hilton quis saber: "Vocês não gostaram da letra?". A verdade é que ninguém tinha prestado muita atenção às palavras. A beleza e a energia da música deixavam a narrativa em segundo plano. Hilton, então, repetiu tudo, mas lentamente, plangendo as cordas do violão e escandindo os versos. Todos, claro, perceberam de imediato a potência do enredo imaginado por Vandré. Nascia ali o recitativo de abertura de 'Disparada', inseparável da composição desde aquele momento.
O arranjo foi sendo desenvolvido em conjunto pelos participantes. As cordas, sopros e ritmos do Quarteto Novo de de Heraldo do Monte, Theo de Barros, Hermeto Paschoal e Airto Moreira, mais as vozes de Marconi Campos, Behring Leiros e Hilton Acioli, o Trio Marayá. Foi Jair, em sua sabedoria de artista popular que "resolveu" o final da música, ao incluir a nota longa, na tônica da escala, que encerra o refrão em 'lara-iá, lara-la-iá'. Vandré foi quem sugeriu usar a queixada de burro como instrumento de percussão.
Na eliminatória em que foi apresentada pela primeira vez, a recepção foi tão calorosa que, quebrando todos os protocolos, a música teve que receber um bis.
A disputa entre 'A Banda' e 'Disparada' tomou o Brasil. Como um Fla X Flu em nível nacional. Nesse dia 10 de outubro de 2016, a final do II Festival de Música Popular Brasileira fez aniversário de 50 anos. As duas obras-primas terminaram empatadas. Qualquer um dos dois compositores, se tivesse levado sozinho o troféu, seria imediatamente odiado por metade da população brasileira, brincou Chico Buarque, sentindo alívio com o resultado.
Hilton Acioli continuou trabalhando com Vandré pelos anos seguintes. Estava nos bastidores dando apoio logístico e musical quando 'Caminhando' ecoou, voz e violão, prenunciando tempos sombrios, no estádio lotado.
Ao longo dos anos 70, iniciou carreira de produtor musical e compositor de publicidade. Fez parte da geração de ouro do 'Nosso Estúdio' de Walter Santos e Teresa Souza e, com o tempo, foi virando referência para a música de campanhas eleitorais. É dele o 'Lula Lá - Sem Medo de Ser Feliz', o jingle político mais famoso e longevo do Brasil.
Essas e muitas outras histórias eu ouvi sentado no banco do carona do Fiat compacto do Hilton voltando de Santo André, onde íamos dar aulas de música, sua mais recente paixão, para as crianças da rede pública, ao longo de três anos, no comecinho do século XXI. As imprecisões da narrativa são todas de minha responsabilidade.
Resolvi contar, pela enésima vez, esse causo que eu adoro contar, para comemorar os 50 anos do Festival. 'A Banda' e 'Disparada' fazem parte de um sonho de emancipação que foi nossa pedra de toque durante muitas décadas. Um sonho continuamente ameaçado, mas agora como nunca antes. Tenho insistido que o futuro está nas mãos de novos atores, recém chegados à cena política. Protagonistas que traçarão rotas que sequer sabemos ainda perceber. O passado de lutas pela democracia no Brasil, no entanto, tem momentos gloriosos. E nós, os velhos, preservamos a memória do que foi, mesmo em momentos de derrota.
'Glória a todas as lutas inglórias que através da nossa história não esquecemos jamais'.

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