quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

minha vida no campo


Por quase dois anos, no início dos anos 90 – lá no século passado -, morei em uma chácara no interior de São Paulo, na zona rural de Jacareí. Os vizinhos eram poucos e esparsos. Eu não tinha telefone; a televisão virou um móvel para apoiar objetos, já que, por ser um vale, não captava nenhuma imagem. Eu tinha uma vitrola, alguns discos e os meus livros. Entre estes, Kierkegaard, Nietzsche, Shopenhauer, Clarisse Lispector..., o que, convenhamos, não são lá leituras para, digamos, um “descanso no campo”. Alguns dos amigos que fiz por lá, não seriam, vamos assim dizer, as pessoas mais recomendadas para se levar para almoçar na casa da mãe num domingo. Por vezes, escutava uma trovoada de rojões, o que indicava que a encomenda dos meus amigos estava à disposição. Lembrando sempre do ditado “amigos, amigos, negócios à parte”, a minha estratégia era não misturar os negócios: eu contava umas histórias a eles que por vezes os divertiam; não consumia deles, nada que pudessem me fornecer, além de umas singelas cachacinhas, e tão pouco me colocava à disposição para ser um representante de vendas da promissora empresa. Dessa forma, e diante da minha franciscana vida, não me importunavam e, mais do que isso, estabeleciam ordens para ninguém me importunasse. Com a tranqüilidade conquistada e com sobra de tempo, cultivava hortaliças; revisava textos acadêmicos; capinava o mato; chupava manga coquinho no pé e, por vezes, rascunhava poemas, como este:


Primeiro Balanço

Após dois meses de exílio campestre,
nada se pode esperar.
Mudamos as roupas
por outras,
abertas e despretensiosas
os costumes
por outros, rupestres, como pintar à cal, pés de mangueira

Mudamos a relação com o tempo

Contamos as rúculas do quintal
como os homens místicos
que contam estrelas.

Não há lucidez no que fazemos.
Nem mesmo no tempo,
que por ser mais lerdo,
segura para si quase tudo que há:
as sementes que plantamos,
as palavras jogadas
e uma parcela do ar,
que engolimos.




Gê César de Paula


Veraneio Ijal, Jacareí, São Paulo, 18 de novembro de 1990.

2 comentários:

Cel Bentin disse...

"contamos as rúculas do quintal como os homens misticos contam estrelas." adorei isso!
e só mais um lembramento:
as palavras jogadas brincam com nosso respiro. E dele não se desgrudam! Seguem juntos em viagem que não finda. Nem no campo nem noutra lida.
Ares? Não se consomem.
Acredita! rs

Gê Cesar de Paula disse...

Este sim é o grande poeta Cel..