Reproduzimos
abaixo, do El País, versão em português, o artigo de Eliane Brum, e a
entrevista com o antropólogo Alexandre Barbosa Pereira que partem do que ficou
conhecido nessa virada do ano por "rolezinho"
Do El País
Do El País
por
Eliane Brum
Os novos “vândalos” do Brasil
O rolezinho, a novidade deste Natal, mostra que, quando a juventude pobre e negra das periferias de São Paulo ocupa os shoppings anunciando que quer fazer parte da festa do consumo, a resposta é a de sempre: criminalização. Mas o que estes jovens estão, de fato, “roubando” da classe média brasileira?
O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o Brasil tratou garotos pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem ousado se divertir nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de ano. Pelas redes sociais, centenas, às vezes milhares de jovens, combinavam o que chamam de “rolezinho”, em shopping próximos de suas comunidades, para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras” ou “tumultuar, pegar geral, se divertir, sem roubos”. No sábado, 14, dezenas entraram no Shopping Internacional de Guarulhos, cantando refrões de funk da ostentação. Não roubaram, não destruíram, não portavam drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram levados até a delegacia, sem que nada justificasse a detenção. Neste domingo, 22, no Shopping Interlagos, garotos foram revistados na chegada por um forte esquema policial: segundo a imprensa, uma base móvel e quatro camburões para a revista, outras quatro unidades da Polícia Militar, uma do GOE (Grupo de Operações Especiais) e cinco carros de segurança particular para montar guarda. Vários jovens foram “convidados” a se retirar do prédio, por exibirem uma aparência de funkeiros, como dois irmãos que empurravam o pai, amputado, numa cadeira de rodas. De novo, nenhum furto foi registrado. No sábado, 21, a polícia, chamada pela administração do Shopping Campo Limpo, não constatou nenhum “tumulto”, mas viaturas da Força Tática e motos da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) permaneceram no estacionamento para inibir o rolezinho e policiais entraram no shopping com armas de balas de borracha e bombas de gás.
(segue em "mais informações")
Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das
periferias da Grande São Paulo está sendo criminalizada?
Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram
construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram superar
a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens negros e
pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do gueto. E
desejar objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela plana, símbolos da
chamada classe C ou “nova classe média”, parcela da população que ascendeu com
a ampliação de renda no governo Lula, mas marcas de luxo, as grandes grifes
internacionais, aqueles que se pretendem exclusivas para uma elite, em geral
branca.
Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o
estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram reprimidos. Vários
rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes shoppings da região
metropolitana de São Paulo até o final de janeiro, mas, com medo da repressão,
muitos têm sido cancelados. Seus organizadores, jovens que trabalham em
serviços como o de office-boy e ajudante geral, temem perder o emprego ao serem
detidos pela polícia por estarem onde supostamente não deveriam estar – numa
lei não escrita, mas sempre cumprida no Brasil. Seguranças dos shoppings foram
orientados a monitorar qualquer jovem “suspeito” que esteja diante de uma
vitrine, mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois
dos ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil mostra a
face deformada do seu racismo. E precisa encará-la, porque racismo, sim, é
crime.
“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos
jovens ao entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk é de MC
Daleste, que afirma no nome artístico a região onde nasceu e se criou, a zona
leste, a mais pobre de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga com as
chuvas, por obras que os sucessivos governos sempre adiam, esmagando sonhos,
soterrando casas, matando adultos e crianças. Daleste morreu assassinado em
julho com um tiro no peito durante um show em Campinas – e assassinato é a
primeira causa de morte dos jovens negros e pobres no Brasil, como os que
ocuparam o Shopping Internacional de Guarulhos.
A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela
correu. Uma das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à repórter Laura
Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de
entrar num lugar como este”. Nos dias que se seguiram, em diferentes sites de
imprensa, leitores assim definiram os “rolezeiros” (veja entrevista abaixo):
“maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Negros emerge aqui como
palavra de ofensa.
As novelas já vendiam uma vida de luxo há
muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de riqueza.
Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem neste mundo.”
O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e Região
Metropolitana de São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o
dinheiro e o prazer que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem com
correntes e anéis de ouro, vestidos com roupas de grife, em carros caros,
cercado por mulheres com muita bunda e pouca roupa. (Para conhecer o funk da ostentação, assista ao
documentário aqui).
Diferentemente do núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que negava o
sistema, e também do movimento de literatura periférica e marginal que, no
início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir, que se compre as marcas
produzidas pela periferia, para a periferia, o funk da ostentação coloca os
jovens, ainda que para a maioria só pelo imaginário, em cenários até então
reservados para a juventude branca das classes média e alta. Esta, talvez, seja
a sua transgressão. Em seus clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os
signos dos ricos. Graças ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram
de fato e tiveram acesso ao mundo que celebravam.
Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao
sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos
intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais das
periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que se seguiu a
eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência, celebrada nos
últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os shoppings, a juventude pobre e
negra das periferias não estava apenas se apropriando dos valores simbólicos,
como já fazia pelas letras do funk da ostentação, mas também dos espaços
físicos, o que marca uma diferença. E, para alguns setores da sociedade,
adiciona um conteúdo perigoso àquele que já foi chamado de “funk do bem”.
A resposta violenta da administração dos shoppings, das
autoridades públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses
atores decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como
uma violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá para
roubar, o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens negros e pobres.
Então, como encaixá-los, em que lugar colocá-los? Preferiram concluir que havia
a intenção de furtar e destruir, o que era mais fácil de aceitar do que admitir
que apenas queriam se divertir nos mesmos lugares da classe média, desejando os
mesmo objetos de consumo que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a
delegacia. Ainda que tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato
havia para mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas,
como historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil.
Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho do Shopping
Internacional de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito policial, sua mãe
chorou e ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por medo de ser ainda
mais massacrado. Ajudante geral de uma empresa, economizou um mês de salário
para comprar a corrente dourada que ostenta no pescoço. Jefferson disse ao
jornal O Globo: “Não seria um protesto, seria uma resposta à opressão. Não dá
para ficar em casa trancado”.
Por esta subversão, ele não será perdoado. Os jovens negros e
pobres das periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na
construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a sexta, e
ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana, querem também se
divertir. Zoar, como dizem. A classe média até aceita que queiram pão, que
queiram geladeira, sente-se mais incomodada quando lotam os aeroportos, mas se
divertir – e nos shoppings? Mais uma frase de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um
quarto só pra mim hoje já seria uma ostentação”. Ele divide um cômodo na
periferia de Guarulhos com oito pessoas.
Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter virado os
novos “vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos protestos,
não se comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades instituídas
e por parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o rolezinho do
Shopping Internacional de Guarulhos foi tachado de “arrastão”. Mas não havia
arrastão nenhum. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz uma provocação
precisa: “Se fosse um grupo numeroso de jovens brancos de classe média, como
aconteceu várias vezes, seria interpretado como um flash mob?”.
Por que os administradores dos shoppings, polícia, parte da
mídia e clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres
dentro de um shopping como “arrastão”? Há várias respostas possíveis. Pereira
propõe uma bastante aguda: “Será que a classe média entende que os jovens estão
‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem?”. Seria este o “roubo”
imperdoável, que colocou as forças de repressão na porta dos shoppings, para
impedir a entrada de garotos desarmados que queriam zoar, dar uns beijos e
cobiçar seus objetos de desejo nas vitrines?
Para nos ajudar a pensar sobre os significados do rolezinho e do
funk da ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna.
Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a
pesquisar as manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu mestrado,
percorreu o mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas escolas públicas
para compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o funk da ostentação.
Mesmo que os rolezinhos, pela força da repressão, se encerrem neste Natal, há
muito que precisamos compreender sobre o que dizem seus protagonistas – e sobre
o que a reação violenta contra eles diz da sociedade brasileira
- O
rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida há, de fato, essa
ligação?
Alexandre Barbosa Pereira – O
funk ostentação é uma releitura paulista do funk carioca, feita a partir da
Baixada Santista e da Região Metropolitana de São Paulo, na qual as letras
passam a ter a seguinte temática: dinheiro, grifes, carros, bebidas e mulheres.
Não se fala mais diretamente de crime, drogas ou sexo. Os funkeiros dessa
vertente começaram a produzir videoclipes inspirados na estética dos
videocliples do gangsta rap estadunidense. Mas o mais curioso desse movimento é
a virada que os jovens fazem ao mudar a pauta que, até então, era principalmente
a criminalidade para o consumo. As músicas deixam de falar de crime para falar
de produtos que eles querem consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto,
rouba carro, bandido não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente
ostentação cantam: “Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar,
rolex, juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top do
momento” (MC Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços para
cantar em casas noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez mais
elaborados, com mais de 20 milhões de acessos no YouTube, o que levou a um
sucesso às margens da mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a alcançar grande
repercussão entre um segmento do público jovem, sem nunca ter aparecido na
televisão. Vi meninas chorando por MCs em bailes, mesmo antes de o funk
ostentação alcançar o destaque que conseguiu na grande mídia. Surgiram empresas
especializadas na produção de clipes no estilo ostentação, como a Kondzilla e a
Funk TV, claramente inspirados no gangsta rap, em que os jovens aparecem em
carrões e motos, exibindo-se com roupas, dinheiro e mulheres. Uma reflexão
interessante a se fazer é como a mídia tradicional, que antes execrava o
chamado funk proibidão, que falava de crime, drogas e sexo abertamente, agora
começa a elogiar o funk ostentação, denominando-o até como “funk do bem” e
ressaltando a trajetória econômica e social ascendente dos MCs.
Pergunta. Fazendo um parêntese
aqui, antes de chegar ao rolezinho, qual é o caminho para um jovem pobre ter
acesso ao consumo de luxo, segundo o olhar do funk da ostentação? Esta virada
que você mencionou...
Resposta. Primeiro que esse bem de
luxo não é tão de luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais não
é nenhum absurdo. É sempre possível comprar uma réplica daqueles óculos escuros
que custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de funk que observei, este era
o preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro amigos dividindo o valor da
compra. Não sai tão caro brincar de ostentar. Agora, tem os carros. Estes sim
estão fora do alcance da maioria desses jovens. Mas aí há uma explicação
interessante, que Montanha, um produtor e diretor de videoclipes da Funk TV, em
Cidade Tiradentes, sabiamente me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam
uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam
ao mundo de luxo. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que
aparecem como um mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões, roupas
de marcas mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou Montanha,
ver-se como parte de um mundo de prestígio, daí a grande identificação. O crime
pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o que esses jovens
entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição que muitos MCs
de funk têm tentando passar em suas falas na grande mídia. Eles de certa forma
mostram um outro caminho, que, aliás, sempre esteve presente para esses jovens
da periferia: tornar-se famoso pela música ou pelo futebol. Aliás, esses são
caminhos que aparecem como os mais possíveis para os jovens negros e pobres das
periferias do país imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma
forte divisão entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do
primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro
mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol, música,
caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro Drama cantado
pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão tentando dizer que é
possível construir uma vida de sucesso pela música. E o que era ficção, os
videoclipes com carros importados emprestados ou alugados, com dinheiro
cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se realidade. Muitos deles
começam a ganhar uma quantidade razoável de dinheiro com os shows. Acho que a
ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk
ostentação.
Será que a classe média entende que os
jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem? Direito que,
por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo.”
Por outro lado, é preciso destacar que masculinidades pautadas
pelo desejo de possuir um automóvel ou uma motocicleta não foram construídas
pelo funk ostentação. Já existia há um tempo. Para os meninos da periferia,
possuir um bom carro, bonito e potente, é uma das metas principais de vida. A
posse do carro é, no imaginário desses jovens, mas também da população em
geral, um indicativo de sucesso econômico e social, garantindo,
consequentemente, sucesso com as mulheres.
Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais exaltado como
espaço de afirmação e de reconhecimento para os jovens. É, inclusive, bastante
complexa a forma como se dá a relação entre criminalidade e consumo no funk. Na
virada que produziram, parece que há o recado de que essas duas ações sociais
podem constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não deixam de falar do
crime. Acabam citando-o indiretamente, como nas músicas do MC Rodofilho, nas
quais ele celebra: “Ai meu deus, como é bom ser vida loka!”. O importante é
entender como o crime e o consumo são pautas constantes nas relações de
sociabilidade dos jovens da periferia. Os mais pobres também querem que ipads,
iphones e automóveis potentes façam parte de seu mundo social. Ainda preciso
observar e refletir mais sobre isso, mas acho que tanto no caso do crime, como
no do consumo temos que atentar mais para o modo como se dão as relações entre
pessoas e coisas. Fico pensando que a busca de realização apenas pelo consumo
envolve sentimentos e posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um
profundo desprezo pelos outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas,
de certa forma têm conformado as subjetividades contemporâneas. E nessas novas
subjetividades, pautadas pelo instantâneo e o instável, parece não haver muito
espaço para a solidariedade. Há uma nova tendência na discussão antropológica
afirmando que não podemos entender as coisas apenas como representação ou
resultado do social. Precisamos pensar também em como as coisas fazem as
pessoas e mesmo o social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas
hoje, motivam tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o
ingresso de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as
imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para comprar um
novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet... Mas não só isso, tais
coisas também motivam e determinam formas de estar, pensar, relacionar-se e sentir
no mundo contemporâneo.
Penso muito nisso quando parte da classe média critica o consumo
desses jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que, supostamente,
pagaria os impostos – têm direito a consumir, ou se relacionar com certos
produtos. Será que, desse modo, a classe média entende que os jovens estão
roubando o direito exclusivo de eles consumirem ou de se relacionarem com esses
objetos de prestígio? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses
jovens pobres há muito tempo?
Essa crítica pode vir inclusive de certa classe média mais
intelectualizada e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que acha que
sabe o que é melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a partir dos seus ipads
e iphones, ao que entendem como um consumo irracional dos mais pobres, que
deveriam poupar ao invés de gastar com produtos que não seriam para o nível
econômico deles. Enfim, tem aí um jogo de perde e ganha e também de busca de
satisfações individuais que envolve o roubo do direito de alguns ao consumo,
que é preciso aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas
contemporâneas. Todos têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria
viável, hoje, todos consumirem em um alto padrão? Que implicações ambientais
teríamos? E se não é sustentável ou viável que todos consumam em tamanha
intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que quero dizer é
que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas entre os pobres,
mas creio que precisamos também olhar para as classes médias e altas e para os
crimes que, historicamente, têm sido cometidos contra os mais pobres e o meio
ambiente para proteger o consumo dos ricos.
P. É neste ponto que os rolezinhos
aparecem e criam uma tensão das mais reveladoras neste Natal?
R. Os rolezinhos nos shoppings estão
ligados diretamente a esse contexto. Não sei dizer como surgiram efetivamente,
mas me parece que despontaram por essas novas associações que as redes sociais
permitem fazer, de forma que uma brincadeira possa virar algo sério. De repente,
uma convocatória feita na internet pode levar centenas de jovens a se
encontrarem num shopping, local onde podem ter acesso a esses bens cantados nas
músicas, ainda que apenas por acesso visual. Agora, o que é importante
ressaltar é que não foram os rolezinhos nem o funk ostentação que criaram essa
relação de fascinação com consumo. Esta já existia há muito tempo. Os
Racionais, há mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como:
“Você disse que era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis
nike e fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”
É importante perceber que os shoppings
onde os rolezinhos ocorreram estão em regiões mais periféricas. Eles não têm
ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade.”
P. Algumas análises relacionam os
rolezinhos a uma ação afirmativa da juventude negra e pobre, a uma denúncia da
opressão e a uma reivindicação de participação, neste caso no mundo do consumo.
Como você analisaria este fenômeno tão novo?
R. Não me arriscaria a dizer que há um
movimento político muito claro. Pode indiretamente constituir-se como uma ação
afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a tensão que se criou com a
criminalização desses jovens, durante os rolezinhos, possa levar a algum tipo
de reflexão e ação política maior, mas é difícil prever. Em um livro
intitulado Cidadania
Insurgente, (o antropólogo americano) James Holston analisa o
surgimento das periferias urbanas no Brasil, particularmente em São Paulo,
apontando a discriminação contra certas espécies de cidadãos no Brasil. Esse
autor mostra como, historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos
mais pobres se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas periferias das
grandes cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se produziram, ao
mesmo tempo, por meio das experiências de tornar-se proprietário, de participar
de movimentos sociais por melhorias dos bairros e de ingressar no mercado
consumidor. Primeiro se ocupou os bairros, mesmo sem estrutura mínima. Depois,
ocorreram as reivindicações pela legalização dos terrenos ocupados. E, enfim,
vieram as lutas pela chegada da energia elétrica, saneamento básico e asfalto.
Acho sempre muito interessante, em conversas com lideranças antigas dos bairros
periféricos de São Paulo, observar que elas indicam a chegada do asfalto como o
grande marco de transformação do bairro e a integração deste ao espaço urbano.
Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de
vista dessa “cidadania insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos que
reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande discurso
hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao menos provocam
ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania, participação política
e direitos que, historicamente, foi feita na marra, pelos mais pobres, muitas
vezes nas costuras entre o legal e o ilegal, e que começou com a própria
ocupação dos bairros na periferia da cidade de São Paulo, como forma de habitar
e sobreviver no mundo urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta
como resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao
hegemônico, produzindo dissonâncias.
O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não essa
reivindicação dos jovens mais pobres por maior participação na vida social mais
ampla pelo consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica, que
não necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta se
afirmar pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído extremamente
irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma prática de
segregação dos que consideram como seus “outros”.
P. Como definir este desconforto? O que
são os “outros” neste contexto? E que papel estes “outros” desempenham?
R. O desconforto em ver pobres ocupando
um lugar em que não deveriam estar, como o de consumidores de certos produtos
que deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de espanto, que indaga: “Como eles,
que não têm dinheiro, querem consumir produtos que não são para a posição
social e econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados “subalternos”.
Podem ser funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas podem ser também as
empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores, entre outros “outros”, que
muitas vezes são utilizados como bode expiatório das frustrações de uma parcela
considerável da classe média.
Há uma tendência de perceber os jovens
pobres a partir de três perspectivas: a do bandido, a da vítima e a do herói.”
Os rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo,
mas afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos templos do
consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos, negros e
pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical considerado marginal, eles
passam a ser vistos e classificados pela maioria dos segmentos da sociedade
como bandidos ou marginais. Vamos pensar que, na própria concepção do shopping,
não está prevista a presença desse público, ainda mais em grupo e fazendo
barulho. Pergunto-me se fosse em um shopping mais nobre, com jovens brancos de
classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste estrato social se
vista, se a repercussão seria a mesma, se a criminalização seria a mesma.
Talvez fosse considerado apenas um flash
mob. Há uma tendência, por parcela considerável da classe média, da
mídia e do poder público de perceber os jovens pobres a partir de três
perspectivas, quase sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a do
herói.
P. Como funcionam estas três
perspectivas – bandido, vítima e herói?
R. São muito mais formas de
enquadrar esses jovens por aqueles que querem tutelá-los do que categorias
assumidas pelos próprios jovens. Por isso, são contextuais. Dependendo da
situação e dos atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser entendido a
partir de uma dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um agente que pode
mobilizar todas essas classificações, dependendo do contexto e dos
interlocutores: a polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores acadêmicos
ou a ONG que quer salvar os jovens da periferia da violência. No caso do funk,
por exemplo, já há comentários e mesmo textos de pessoas mais politizadas vendo
os rolezinhos como uma ação afirmativa ou extremamente contestatória. Para
estes, os protagonistas dos rolezinhos são vítimas que se tornaram heróis.
Outros, como a polícia, a administração dos shoppings e a clientela, mas também
seus vizinhos, que moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles
principalmente vilões e mesmo bandidos.
Jovens como estes que estão nos rolezinhos não necessariamente
aceitam se encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem também se
encaixar em todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um fenômeno como
este. Porém, se pensarmos esse movimento que surge principalmente com o hip
hop, de valorizar a periferia como espaço político e de afirmação positiva, é
possível ver, sim, ainda que em menor intensidade, uma certa ação política. De
dizer: “Somos da quebrada e temos orgulho disso”. Um movimento de reversão do
estigma em marca positiva.
P. Mas há, de fato, uma ação consciente,
organizada, com um sentido político prévio? Ou o sentido está sendo construído
a partir dos acontecimentos, o que é igualmente legítimo?
R. Olha, sinceramente, é difícil dizer
se há um sentido político, direto, consciente e/ou explícito. Talvez por parte
de alguns, mas pelo que vi nas redes sociais, não da maioria. Se o movimento
persistir ou tomar outras formas, pode ser que tal sentido político fique mais
forte. Por enquanto é difícil analisar esse ponto. O antropólogo (indiano)
Arjun Appadurai analisa há algum tempo as mudanças que se processam no mundo
por causa do avanço das tecnologias de comunicação e de transporte. Segundo
este autor, as pessoas cada vez mais se deslocam no mundo atual, e não apenas
fisicamente, mas também e talvez principalmente pela imaginação, por causa de
meios de comunicação como a televisão e, mais recentemente, pela internet. Hoje
é possível imaginar-se nos mais diferentes lugares do mundo, mas também em
diferentes classes sociais. O que são os videoclipes de funk da ostentação que
não imagens/imaginações que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a
outra classe social ou possuir melhores condições econômicas para o consumo?
O que são os videoclipes de funk ostentação
que não imagens que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra
classe social?”
Essa imaginação, segundo esse autor, pode constituir-se como um
projeto político compartilhado, mas pode também ser apenas uma fantasia, como
algo individualista e egoísta, sem grandes potenciais políticos. Parece-me que
o funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o dos rolezinhos nos
shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil saber se alguma delas
irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.
P. A escolha da música do MC Daleste,
assassinado num show em Campinas, para o rolezinho promovido no Shopping
Internacional de Guarulhos, pode ter um significado a mais?
R. A escolha da música do MC Daleste na
entrada dos jovens no shopping de Guarulhos me pareceu bastante significativa,
por vários motivos. Principalmente, porque a morte dele no palco, cantando
funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da ostentação. O seu
assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta vertente do funk
paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa relação confusa
entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante forte no que o MC Daleste
representa. Há no seu próprio nome artístico essa afirmação de um certo orgulho
do lugar de onde vem e de ser da periferia, que tanto o funk quanto o hip hop
expressam. Não é por acaso que ele é “Da Leste”. Lembremos que Guarulhos também
está à leste da Região Metropolitana de São Paulo.
P. Hoje, uma parte significativa da
geração que se criou nas periferias com movimentos contestatórios como o hip
hop e a literatura periférica ou marginal tem, pelo funk da ostentação,
assumido os valores de consumo das classes médias e alta. Como você analisa
este fenômeno e o insere no contexto histórico atual do Brasil?
R. O que um evento como esse parece
evidenciar é, por um lado, esse anseio por consumir e por afirmar-se pelo
consumo que esses jovens vêm demonstrando já há algum tempo, pelas letras dos
funks, mas que também já é visto no hip hop. Apesar das críticas de certos
segmentos do hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com o hip hop mais
politizado dos anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas possíveis
continuidades a esse movimento cultural. Parece-me que o funk ostentação é uma
releitura paulista, muito influenciada pelo hip hop, do funk carioca. Muitos
MCs de funk eram MCs de hip hop, muitos deles, além dos funks, cantam também
raps, e músicas dos Racionais são ouvidas nos shows. Trechos de letras de
músicas dos Racionais podem ser encontrados facilmente nas letras do funk.
Agora, o fato é que o funk não é tão marcado pela questão política como o hip
hop. O Montanha, de Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa vez,
de que, na verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política que faltava
aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade. Parece-me uma
reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter lazer e sociabilidade
também, nem o funk, protesto político, mas que as duas vertentes tendem para um
dos polos. O funk, aliás, ganhou esse grande espaço junto aos jovens das
periferias de São Paulo porque, nessa articulação de um espaço de lazer,
configurou-se um espaço para as mulheres que, no hip hop, era mais difícil. As
mulheres são presença fundamental nos bailes funks. O protagonismo da dança
sempre foi delas. Ainda que os meninos também dancem e as meninas participem
cada vez mais como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino, da dança ao
estilo de se vestir.
P. Mas qual é a diferença, na sua
opinião, entre a forma como, por exemplo, os Racionais falam em consumo e os
MCs da ostentação falam de consumo?
Devemos questionar não a ação dos meninos,
mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade que se pautam cada vez
mais pela busca do reconhecimento pelo consumo, pela posse de bens.”
R. Há aí duas perspectivas. Quando digo
que os Racionais já cantavam isso, quero dizer que eles já identificavam essa
necessidade de consumir da juventude. E de consumir o que eles achavam que era
bom, nada de consumo consciente. Por isso digo que os Racionais já faziam, há
mais de dez anos, uma leitura desse anseio por consumir dos jovens pobres. Por
outro lado, há essa dimensão de movimentos como o dos escritores da periferia,
promovendo produtos da periferia, pela periferia. O funk ostentação começa sem
se preocupar com essa questão diretamente. Ele não tem dor na consciência por
cantar o consumo em suas músicas e aderir ao sistema, por exemplo. Porém,
indiretamente, se acaba chegando a um outro ponto, na medida em que uma parcela
considerável de jovens da periferia passa a possuir algum tipo de renda com a
produção do funk. Sejam os meninos que gravam os videoclipes, os próprios MCs,
mas também empresários, produtores, técnicos e mesmo alguns MCs tornando-se
empreendedores e criando seus próprios negócios. Como o MC Nego Blue, que
observando de perto o sucesso das roupas de grife entre os jovens, criou a
Black Blue, uma loja de roupas cujo símbolo é uma carpa colorida. Hoje, além de
possuir lojas próprias, já vende suas roupas em lojas multimarcas, ao lado de
camisas da Lacoste ou de outras marcas famosas que os meninos procuram, e por
um preço muito parecido. Uma das empresas que agencia shows de funk em Cidade
Tiradentes chama-se justamente “Nóis por nóis”.
Os rolezinhos parecem dizer: não apenas queremos consumir, mas
queremos ocupar em massa e se divertir aí nos seus shoppings, nos seus ou nos
nossos. É importante perceber também que os shoppings onde os eventos ocorreram
estão em regiões mais periféricas, provavelmente próximos ao próprio bairro de
moradia dos jovens. Por enquanto, eles não têm ido aos templos maiores do
consumo de luxo na cidade, na região dos Jardins, Faria Lima, Marginal
Pinheiros etc. Pode haver aí também um componente de um termo que surgiu muito forte
para mim na pesquisa que fiz em escolas de ensino médio, no meu doutorado, que
é a ideia do “zoar”. Eles querem zoar, que é chamar a atenção para si e se
divertir, namorar, brincar e, se for preciso, brigar.
P. Por que, neste momento, o lazer se
impõe como uma reivindicação desta geração, acima de questões como saúde,
educação e transporte de qualidade?
R. Acho que não há uma reivindicação
política bem formuladinha como acontecia com o hip hop: queremos mais saúde,
educação e lazer. Eles simplesmente querem estar nos shoppings para zoar e vão.
Não há essa reflexão mais elaborada que o hip hop produz, é mais espontâneo.
Esse talvez possa ser um ponto de distinção. E o próprio funk é, por si só,
lazer e diversão, um dispositivo poderosíssimo para dançar e motivar paqueras.
O zoar pode ser lido como um ato político, mas não me parece intencional. Acho
que cria uma tensão que é política, que é de disputa de poder pelos espaços da
cidade, mas não há um manifesto pela zoeira ou pelos rolezinhos, como houve, por
exemplo, no caso do manifesto da arte periférica dos escritores.
P. Há também um movimento maior para
sair dos guetos e ocupar os guetos da classe média? Em massa e não mais
individualmente, como quando um grupo de rap aparecia numa TV, mesmo sendo a
MTV, ou um escritor do movimento literário marginal ou periférico publicava
numa grande editora? Esta é uma novidade importante?
R. Acho que abre, sim, para fora do
gueto, do bairro onde se vive, mas não para muito longe, pois, afinal, os
shoppings para os quais eles vão estão do lado de suas casas. Neste sentido,
acho que o hip hop, apesar de falar mais do gueto, abre-se muito mais para fora
do gueto, na medida em que conquista um espaço importante nas políticas
públicas de cultura, por exemplo.
É como se a sociedade dissesse: ‘Vocês,
pobres, podem consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e
cantar funk, aí já é vandalismo’.”
Claro que esse espaço de lazer é problemático e conflitivo mesmo
dentro dos bairros das periferias onde moram esses jovens. Se entrevistarmos os
seus vizinhos, certamente a maioria vai se posicionar totalmente favorável à
proibição das festas de rua que eles organizam, com som alto que muitas vezes
toma a madrugada toda. Por isso, acho importante não tomar o funk nem como um
movimento libertador, nem como o grande vilão ou o grande movimento de
corrupção da juventude contemporânea, como setores mais moralistas, à esquerda
e à direita, tendem a fazer.
A questão do consumo também me parece problemática. O desejo
pelo consumo sempre existiu. Bem antes do governo Lula, o processo de
urbanização induz a esse apego maior ao consumo. Porém, não dá para se negar
que houve, nos últimos anos, também uma melhora econômica para segmentos que
antes estavam bastante afastados do mercado. Porém, acho que reduzir o sucesso
do funk da ostentação a isso é simplificar demais o movimento e esquecer que
ocorreram e ocorrem movimentos juvenis parecidos em outras partes do mundo,
como o próprio gangsta rap, nos Estados Unidos, no qual os videoclipes se
inspiram.
Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações
sociais fomentadas na contemporaneidade. É preciso conceder aos jovens, e não
apenas aos pobres, mas aos de classe média e alta também, outros espaços de
reconhecimento e de estabelecimento de relações sociais que não sejam pautados
pela afirmação por meio da posse e do consumo de bens. Porque, afinal, como
dizem os Racionais, mais uma vez: “Quem não quer brilhar, quem não? Mostra
quem. Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém”. De repente, para alguns, ter um
tênis caro, um smartphone de última geração ou ir ao shopping para zoar, pode
ser uma forma encontrada para tentar brilhar.
P. Ao ocupar os shoppings, os adeptos do
funk da ostentação estariam promovendo sua primeira atitude de insurgência
contra o sistema, no sentido de: “Vou ocupar o espaço que me é negado ou onde
não me querem”. É isso? Ou as próprias letras das músicas, interpretadas, em
geral, como adesão ao sistema, já seriam, de fato, uma insurgência, na medida
que se apropriam, simbolicamente, dos valores da elite e da classe média e, agora,
com os rolezinhos, também de seus espaços físicos?
R. Sim, acho que essa é a maior
irritação da classe média com esses movimentos. Basta ver os comentários aos
videoclipes no YouTube, irritados com os meninos ostentando e exibindo-se com
produtos mais caros, que não deveriam estar com aqueles meninos, pobre e
negros, em sua maioria. Esta é a principal insurgência que eles provocam. A
classe média, de uma maneira geral, a mais pobre ou a mais rica, a mais ou
menos intelectualizada, irrita-se bastante quando os subalternos compram bens
caros, mesmo antes deles. Já ouvi comentários indignados, do tipo: “Minha
empregada comprou uma televisão de última geração, melhor do que a minha”. Isso
tem antecedentes históricos que parecem refletir até hoje. James Holston, ainda
no livro sobre cidadania insurgente, que citei anteriormente, traz como exemplo
a legislação colonial portuguesa, que proibia aos negros o uso de joias e
artigos considerados finos...
P. Parece que os “rolezeiros” dos
shoppings estão ocupando o mesmo lugar simbólico dos “vândalos” nas
manifestações, na narrativa feita por parte da grande mídia e pelas autoridades
instituídas. Como você interpreta essa reação?
Os comentários em sites e redes sociais
revelam esse profundo racismo entranhado em parcela considerável da população
brasileira.”
R. O que me assustou de verdade nessa
história toda foram as reações, de mídia e de polícia, condenando e mandando
prender, mesmo em casos em que disseram que não houve arrastões, mas correrias.
Fico questionando quem provocou a correria: os jovens ou a ação dos seguranças
e da polícia? Eventos como estes revelam também uma faceta complicada e
extremamente preconceituosa da classe média brasileira. Dei uma entrevista
curta para o site de um grande grupo de comunicação e fiquei assustado ao ler
os comentários dos leitores, de um ódio terrível contras os meninos e meninas
que foram aos shoppings, contra os pobres, contra mim, que tive uma fala
dissonante na entrevista, ressaltando a forma preconceituosa com que tal tema
vinha sendo tratado. Ao falarem do evento, algumas palavras utilizadas como
categorias de acusação contra os jovens e as jovens foram bastante reveladoras
do preconceito, e mesmo do racismo, deste segmento social: “favelados”,
“maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Nesse último caso,
inclusive, fica evidente o racismo que aparece em muitos comentários dessa
notícia, mas também nas comunidades dos rolezinhos que os jovens criaram nas
redes sociais. Um dos comentários pede para que os jovens voltem para a África.
Isso é muito grave. Revela esse profundo racismo entranhado em parcela
considerável da população. Como se tal sociedade dissesse, por meio dos
representantes dos shoppings, da mídia e da polícia, brincando um pouco com a
questão das manifestações de junho: “Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao
shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo”.
P. A classe média é racista?
R. O que chamamos de classe média não é
um todo homogêneo. É possível segmentá-la em diferentes níveis e a partir de
diferentes contextos, é possível pensar em uma classe média intelectualizada ou
não intelectualizada. Contudo, parece-me que a divisão mais importante para se
pensar a classe média em São Paulo é a que se dá por critérios socioeconômicos
e espaciais. Há a classe média que está concentrada principalmente no entorno
do eixo central, que vai do Centro a Pinheiros, passando pela Avenida Paulista
e bairros próximos. Esta, em sua maioria, vive numa bolha e tem poucos contatos
com outras classes sociais, com exceção dos trabalhadores subalternos:
porteiros, empregadas domésticas etc. Para esta, em grande medida, o Shopping
Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.
Porém, há também certa classe média baixa que vive na periferia.
Citando novamente o Holston, ele fala de uma diferenciação que se produziu nas
periferias de São Paulo entre aqueles que compraram seus terrenos, ainda que
por meio de contratos obscuros, e aqueles que ocuparam os espaços da cidade,
formando as favelas. Essa pequena diferença não cria um grande abismo
econômico, mas produz uma profunda diferenciação, por meio do qual um grupo
estigmatiza o outro. Já vi um indivíduo desta classe média da periferia
questionando programas como o bolsa família, porque tinha visto potes vazios de
iogurte no lixo da favela. Este indivíduo afirmava que nem ele consumia iogurte
com tanta frequência, como eles se davam ao direito de consumir tal produto,
que era um luxo, raro, mas sobre o qual ele detinha certa exclusividade?
A questão do auxílio aos mais pobres, principalmente o bolsa
família, é um forte fator de estigmatização por parte desses diferentes
segmentos da classe média, mas principalmente por parte dessa classe média da
periferia. Estive, recentemente, em uma escola pública próxima a uma grande
favela de São Paulo. Segundo os professores, um dos problemas daquela escola
era o fato de que 90% dos alunos vinham da favela vizinha. E que, hoje, esses
alunos estavam muito acomodados, pois viviam de bolsas e na favela tinham tudo
muito fácil, com a grande quantidade de projetos presentes por lá. Inclusive,
projetos de música, ressaltou um professor. É muito importante refletir sobre
isso, porque esses professores, se não moram na favela, são vizinhos dela. Mas,
ainda assim, permitem-se diferenciar-se dos jovens por questões muito pequenas.
E são estes professores os responsáveis por formar esses jovens. Será que, com
este olhar, são capazes de lutar para que a escola se torne um espaço de
convivência, afirmação e reconhecimento para os jovens?
P. Como você, que tem acompanhado o
cotidiano de escolas públicas, em São Paulo, percebe a educação?
Para uma parcela da classe média de São
Paulo, o Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.”
R. É necessário pensarmos em uma
educação para as diferenças, para que não caiamos mais na armadilha da
intolerância e das análises apressadas e preconceituosas de setores das elites
e das camadas médias, ao se referirem aos “subalternos”. Lembro-me de um
documentário português, que vale a pena ser assistido, sobre a história de um
arrastão que não existiu. Chama-se: “Era uma vez um arrastão” (assistaaqui ).
Nele, conta-se do dia em que jovens caboverdianos ou descendentes de
caboverdianos resolveram frequentar a nobre praia de Carcavelos, em Portugal. A
polícia, ao ver a concentração de jovens de origem africana, assustou-se e
resolveu intervir, provocando uma grande correria, que foi noticiada como
arrastão. Mas, de fato, os jovens fugiam da repressão policial gratuita. Isso
talvez nos ensine algo sobre os arrastões que estamos a criar todo dia,
criminalizando jovens pobres cotidianamente.
Quando estive pesquisando em escolas públicas da periferia de
São Paulo, era comum ouvir dos professores que, naquela escola, os alunos eram
todos bandidos ou marginais. O discurso da criminalização é efetivo e poderoso
e condena muita gente ao fracasso escolar e mesmo ao crime. O sociólogo polonês
Zygmunt Bauman, num livro sobre educação e juventude, ressalta a necessidade
cada vez mais premente, na contemporaneidade, de desenvolvermos a arte de
conviver com os estranhos e a diferença. Em especial num mundo no qual as
migrações tendem a aumentar cada vez mais. No nosso caso, não foi preciso a
chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de
preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros. Mas brasileiros
que moram muito, muito distante, ainda que vizinhos. Moram em Guaianazes, Capão
Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...
P. Em que medida, na sua opinião, os
rolezinhos se ligam às manifestações de junho?
R. Acho que não há uma ligação direta.
Mas, indiretamente, é possível perceber a reivindicação comum do uso do espaço
público e de quebra das marcas da segregação. Lembro-me que, antes das
manifestações de junho, para a imprensa conservadora era um tabu ocupar a
Avenida Paulista. Os movimentos sociais mostraram que não apenas não era um
tabu, como era um direito, o direito de ir às ruas e ocupá-las para protestar.
Os rolezinhos não parecem ter uma pauta tão clara, mas também estão, ainda que
indiretamente, dizendo: “Vocês não disseram que era bom consumir? Pois bem, nós
também queremos!”
P. Essa ocupação de espaços que
supostamente pertenceriam a “outros”, tanto no caso das manifestações como no
caso dos rolezinhos, parece marcar uma novidade importante. O que está
acontecendo?
R. Acho que a novidade está
aí, mas é difícil dizer o que está acontecendo ou o que acontecerá. Pode ser
apenas um surto – algo parecido com o que foi a revolta da vacina como reação
às propostas políticas opressoras de reforma sanitária do Rio de Janeiro, por
exemplo – ou pode ser uma nova forma de pensar os espaços públicos e privados
nas cidades brasileiras. Porém, é difícil prever. Os rolezinhos podem ter
acabado nesta semana, por exemplo. E movimentos como os de junho não se
repetiram com tanta intensidade e repercussão. Contudo, o que movimentos como
estes garantem é a possibilidade de se tensionar essa ocupação dos espaços
urbanos, amplamente negada até então.
Aqui não foi preciso a chegada de
estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os
estrangeiros éramos nós, os brasileiros que moram em Guaianazes, Capão Redondo,
Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...”
P. Por que este nome, rolezinho? E que
significados ele contém?
R. Rolezinho é um termo que está
diretamente ligado à ideia de lazer. De sair para se divertir e usufruir da
cidade. Os pichadores, com os quais realizei pesquisa no mestrado, também usam
a ideia de rolê, para se referirem às suas pichações. Com isso estão dizendo
que pichar é dar voltas para conhecer e se apropriar da cidade. Parece que, por
este termo, indiretamente, podemos entender uma reivindicação pelo direito de
se divertir na cidade.
P. Divertir-se na cidade não seria um
ato de insubordinação para jovens pobres e negros? Talvez até o maior ato de
insubordinação?
R. Sim, principalmente numa sociedade em
que pobres e negros têm que trabalhar – e apenas trabalhar – sem reclamar.
Lembremos de que a ROTA, no final do regime militar, atuava nas periferias
abordando os moradores e cobrando-lhes a carteira profissional como prova de
que eram trabalhadores e não vagabundos. Devotados, portanto, ao trabalho e não
à diversão. Agora, claro que esses jovens não estão pensando exatamente nisso.
Querem muito mais é se divertir.
P. Como entender este fenômeno, que é,
ao mesmo tempo, uma insubordinação e uma adesão ao sistema?
R. Acho que a melhor palavra
é paradoxo. O funk da ostentação em São Paulo é paradoxal: não dá para situá-lo
num polo ou noutro, dentro do modo tradicional de pensar a política.
Conservador ou revolucionário? Nenhum dos dois, mas com possibilidade para os
dois ao mesmo tempo.
Eliane Brum é escritora, repórter e
documentarista. Autora dos livros de não ficçãoA Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua e A Menina Quebrada e
do romance Uma Duas.
Email: elianebrum@uol.com.br .
Twitter: @brumelianebrum
Se não há crime, por que a juventude pobre e negra das
periferias da Grande São Paulo está sendo criminalizada?
Primeiro, por causa do passo para dentro. Os shoppings foram
construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles ousaram superar
a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para jovens negros e
pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do gueto. E
desejar objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela plana, símbolos da
chamada classe C ou “nova classe média”, parcela da população que ascendeu com
a ampliação de renda no governo Lula, mas marcas de luxo, as grandes grifes
internacionais, aqueles que se pretendem exclusivas para uma elite, em geral
branca.
Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens haviam ocupado o
estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram reprimidos. Vários
rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes shoppings da região
metropolitana de São Paulo até o final de janeiro, mas, com medo da repressão,
muitos têm sido cancelados. Seus organizadores, jovens que trabalham em
serviços como o de office-boy e ajudante geral, temem perder o emprego ao serem
detidos pela polícia por estarem onde supostamente não deveriam estar – numa
lei não escrita, mas sempre cumprida no Brasil. Seguranças dos shoppings foram
orientados a monitorar qualquer jovem “suspeito” que esteja diante de uma
vitrine, mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley ou tênis Mizuno, dois
dos ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do Natal, o Brasil mostra a
face deformada do seu racismo. E precisa encará-la, porque racismo, sim, é
crime.
“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão cantado pelos
jovens ao entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk é de MC
Daleste, que afirma no nome artístico a região onde nasceu e se criou, a zona
leste, a mais pobre de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga com as
chuvas, por obras que os sucessivos governos sempre adiam, esmagando sonhos,
soterrando casas, matando adultos e crianças. Daleste morreu assassinado em
julho com um tiro no peito durante um show em Campinas – e assassinato é a
primeira causa de morte dos jovens negros e pobres no Brasil, como os que
ocuparam o Shopping Internacional de Guarulhos.
A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas, a clientela
correu. Uma das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à repórter Laura
Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este tipo de maloqueiro de
entrar num lugar como este”. Nos dias que se seguiram, em diferentes sites de
imprensa, leitores assim definiram os “rolezeiros” (veja entrevista abaixo):
“maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Negros emerge aqui como
palavra de ofensa.
As novelas já vendiam uma vida de luxo há
muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de riqueza.
Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem neste mundo.”
O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e Região
Metropolitana de São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o
dinheiro e o prazer que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem com
correntes e anéis de ouro, vestidos com roupas de grife, em carros caros,
cercado por mulheres com muita bunda e pouca roupa. (Para conhecer o funk da ostentação, assista ao
documentário aqui).
Diferentemente do núcleo duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que negava o
sistema, e também do movimento de literatura periférica e marginal que, no
início dos anos 2000, defendia que, se é para consumir, que se compre as marcas
produzidas pela periferia, para a periferia, o funk da ostentação coloca os
jovens, ainda que para a maioria só pelo imaginário, em cenários até então
reservados para a juventude branca das classes média e alta. Esta, talvez, seja
a sua transgressão. Em seus clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os
signos dos ricos. Graças ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram
de fato e tiveram acesso ao mundo que celebravam.
Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada como adesão ao
sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma parcela dos
intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças culturais das
periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que se seguiu a
eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência, celebrada nos
últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os shoppings, a juventude pobre e
negra das periferias não estava apenas se apropriando dos valores simbólicos,
como já fazia pelas letras do funk da ostentação, mas também dos espaços
físicos, o que marca uma diferença. E, para alguns setores da sociedade,
adiciona um conteúdo perigoso àquele que já foi chamado de “funk do bem”.
A resposta violenta da administração dos shoppings, das
autoridades públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses
atores decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como
uma violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá para
roubar, o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens negros e pobres.
Então, como encaixá-los, em que lugar colocá-los? Preferiram concluir que havia
a intenção de furtar e destruir, o que era mais fácil de aceitar do que admitir
que apenas queriam se divertir nos mesmos lugares da classe média, desejando os
mesmo objetos de consumo que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a
delegacia. Ainda que tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato
havia para mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas,
como historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil.
Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho do Shopping
Internacional de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito policial, sua mãe
chorou e ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por medo de ser ainda
mais massacrado. Ajudante geral de uma empresa, economizou um mês de salário
para comprar a corrente dourada que ostenta no pescoço. Jefferson disse ao
jornal O Globo: “Não seria um protesto, seria uma resposta à opressão. Não dá
para ficar em casa trancado”.
Por esta subversão, ele não será perdoado. Os jovens negros e
pobres das periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em trabalhar na
construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda a sexta, e
ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana, querem também se
divertir. Zoar, como dizem. A classe média até aceita que queiram pão, que
queiram geladeira, sente-se mais incomodada quando lotam os aeroportos, mas se
divertir – e nos shoppings? Mais uma frase de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um
quarto só pra mim hoje já seria uma ostentação”. Ele divide um cômodo na
periferia de Guarulhos com oito pessoas.
Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter virado os
novos “vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos protestos,
não se comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades instituídas
e por parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o rolezinho do
Shopping Internacional de Guarulhos foi tachado de “arrastão”. Mas não havia
arrastão nenhum. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz uma provocação
precisa: “Se fosse um grupo numeroso de jovens brancos de classe média, como
aconteceu várias vezes, seria interpretado como um flash mob?”.
Por que os administradores dos shoppings, polícia, parte da
mídia e clientela só conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres
dentro de um shopping como “arrastão”? Há várias respostas possíveis. Pereira
propõe uma bastante aguda: “Será que a classe média entende que os jovens estão
‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem?”. Seria este o “roubo”
imperdoável, que colocou as forças de repressão na porta dos shoppings, para
impedir a entrada de garotos desarmados que queriam zoar, dar uns beijos e
cobiçar seus objetos de desejo nas vitrines?
Para nos ajudar a pensar sobre os significados do rolezinho e do
funk da ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta coluna.
Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se a
pesquisar as manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu mestrado,
percorreu o mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas escolas públicas
para compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o funk da ostentação.
Mesmo que os rolezinhos, pela força da repressão, se encerrem neste Natal, há
muito que precisamos compreender sobre o que dizem seus protagonistas – e sobre
o que a reação violenta contra eles diz da sociedade brasileira
- O
rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida há, de fato, essa
ligação?
Alexandre Barbosa Pereira – O
funk ostentação é uma releitura paulista do funk carioca, feita a partir da
Baixada Santista e da Região Metropolitana de São Paulo, na qual as letras
passam a ter a seguinte temática: dinheiro, grifes, carros, bebidas e mulheres.
Não se fala mais diretamente de crime, drogas ou sexo. Os funkeiros dessa
vertente começaram a produzir videoclipes inspirados na estética dos
videocliples do gangsta rap estadunidense. Mas o mais curioso desse movimento é
a virada que os jovens fazem ao mudar a pauta que, até então, era principalmente
a criminalidade para o consumo. As músicas deixam de falar de crime para falar
de produtos que eles querem consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto,
rouba carro, bandido não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente
ostentação cantam: “Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar,
rolex, juliet. Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top do
momento” (MC Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços para
cantar em casas noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez mais
elaborados, com mais de 20 milhões de acessos no YouTube, o que levou a um
sucesso às margens da mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a alcançar grande
repercussão entre um segmento do público jovem, sem nunca ter aparecido na
televisão. Vi meninas chorando por MCs em bailes, mesmo antes de o funk
ostentação alcançar o destaque que conseguiu na grande mídia. Surgiram empresas
especializadas na produção de clipes no estilo ostentação, como a Kondzilla e a
Funk TV, claramente inspirados no gangsta rap, em que os jovens aparecem em
carrões e motos, exibindo-se com roupas, dinheiro e mulheres. Uma reflexão
interessante a se fazer é como a mídia tradicional, que antes execrava o
chamado funk proibidão, que falava de crime, drogas e sexo abertamente, agora
começa a elogiar o funk ostentação, denominando-o até como “funk do bem” e
ressaltando a trajetória econômica e social ascendente dos MCs.
Pergunta. Fazendo um parêntese
aqui, antes de chegar ao rolezinho, qual é o caminho para um jovem pobre ter
acesso ao consumo de luxo, segundo o olhar do funk da ostentação? Esta virada
que você mencionou...
Resposta. Primeiro que esse bem de
luxo não é tão de luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais não
é nenhum absurdo. É sempre possível comprar uma réplica daqueles óculos escuros
que custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de funk que observei, este era
o preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro amigos dividindo o valor da
compra. Não sai tão caro brincar de ostentar. Agora, tem os carros. Estes sim
estão fora do alcance da maioria desses jovens. Mas aí há uma explicação
interessante, que Montanha, um produtor e diretor de videoclipes da Funk TV, em
Cidade Tiradentes, sabiamente me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam
uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam
ao mundo de luxo. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que
aparecem como um mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões, roupas
de marcas mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou Montanha,
ver-se como parte de um mundo de prestígio, daí a grande identificação. O crime
pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o que esses jovens
entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição que muitos MCs
de funk têm tentando passar em suas falas na grande mídia. Eles de certa forma
mostram um outro caminho, que, aliás, sempre esteve presente para esses jovens
da periferia: tornar-se famoso pela música ou pelo futebol. Aliás, esses são
caminhos que aparecem como os mais possíveis para os jovens negros e pobres das
periferias do país imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma
forte divisão entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do
primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro
mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol, música,
caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro Drama cantado
pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão tentando dizer que é
possível construir uma vida de sucesso pela música. E o que era ficção, os
videoclipes com carros importados emprestados ou alugados, com dinheiro
cenográfico jogado para o ar, começa a tornar-se realidade. Muitos deles
começam a ganhar uma quantidade razoável de dinheiro com os shows. Acho que a
ideia da imaginação como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk
ostentação.
Será que a classe média entende que os
jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem? Direito que,
por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo.”
Por outro lado, é preciso destacar que masculinidades pautadas
pelo desejo de possuir um automóvel ou uma motocicleta não foram construídas
pelo funk ostentação. Já existia há um tempo. Para os meninos da periferia,
possuir um bom carro, bonito e potente, é uma das metas principais de vida. A
posse do carro é, no imaginário desses jovens, mas também da população em
geral, um indicativo de sucesso econômico e social, garantindo,
consequentemente, sucesso com as mulheres.
Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais exaltado como
espaço de afirmação e de reconhecimento para os jovens. É, inclusive, bastante
complexa a forma como se dá a relação entre criminalidade e consumo no funk. Na
virada que produziram, parece que há o recado de que essas duas ações sociais
podem constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não deixam de falar do
crime. Acabam citando-o indiretamente, como nas músicas do MC Rodofilho, nas
quais ele celebra: “Ai meu deus, como é bom ser vida loka!”. O importante é
entender como o crime e o consumo são pautas constantes nas relações de
sociabilidade dos jovens da periferia. Os mais pobres também querem que ipads,
iphones e automóveis potentes façam parte de seu mundo social. Ainda preciso
observar e refletir mais sobre isso, mas acho que tanto no caso do crime, como
no do consumo temos que atentar mais para o modo como se dão as relações entre
pessoas e coisas. Fico pensando que a busca de realização apenas pelo consumo
envolve sentimentos e posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um
profundo desprezo pelos outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas,
de certa forma têm conformado as subjetividades contemporâneas. E nessas novas
subjetividades, pautadas pelo instantâneo e o instável, parece não haver muito
espaço para a solidariedade. Há uma nova tendência na discussão antropológica
afirmando que não podemos entender as coisas apenas como representação ou
resultado do social. Precisamos pensar também em como as coisas fazem as
pessoas e mesmo o social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas
hoje, motivam tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o
ingresso de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as
imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para comprar um
novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet... Mas não só isso, tais
coisas também motivam e determinam formas de estar, pensar, relacionar-se e sentir
no mundo contemporâneo.
Penso muito nisso quando parte da classe média critica o consumo
desses jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que, supostamente,
pagaria os impostos – têm direito a consumir, ou se relacionar com certos
produtos. Será que, desse modo, a classe média entende que os jovens estão
roubando o direito exclusivo de eles consumirem ou de se relacionarem com esses
objetos de prestígio? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado desses
jovens pobres há muito tempo?
Essa crítica pode vir inclusive de certa classe média mais
intelectualizada e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que acha que
sabe o que é melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a partir dos seus ipads
e iphones, ao que entendem como um consumo irracional dos mais pobres, que
deveriam poupar ao invés de gastar com produtos que não seriam para o nível
econômico deles. Enfim, tem aí um jogo de perde e ganha e também de busca de
satisfações individuais que envolve o roubo do direito de alguns ao consumo,
que é preciso aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas
contemporâneas. Todos têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria
viável, hoje, todos consumirem em um alto padrão? Que implicações ambientais
teríamos? E se não é sustentável ou viável que todos consumam em tamanha
intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que quero dizer é
que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas entre os pobres,
mas creio que precisamos também olhar para as classes médias e altas e para os
crimes que, historicamente, têm sido cometidos contra os mais pobres e o meio
ambiente para proteger o consumo dos ricos.
P. É neste ponto que os rolezinhos
aparecem e criam uma tensão das mais reveladoras neste Natal?
R. Os rolezinhos nos shoppings estão
ligados diretamente a esse contexto. Não sei dizer como surgiram efetivamente,
mas me parece que despontaram por essas novas associações que as redes sociais
permitem fazer, de forma que uma brincadeira possa virar algo sério. De repente,
uma convocatória feita na internet pode levar centenas de jovens a se
encontrarem num shopping, local onde podem ter acesso a esses bens cantados nas
músicas, ainda que apenas por acesso visual. Agora, o que é importante
ressaltar é que não foram os rolezinhos nem o funk ostentação que criaram essa
relação de fascinação com consumo. Esta já existia há muito tempo. Os
Racionais, há mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como:
“Você disse que era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis
nike e fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”
É importante perceber que os shoppings
onde os rolezinhos ocorreram estão em regiões mais periféricas. Eles não têm
ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade.”
P. Algumas análises relacionam os
rolezinhos a uma ação afirmativa da juventude negra e pobre, a uma denúncia da
opressão e a uma reivindicação de participação, neste caso no mundo do consumo.
Como você analisaria este fenômeno tão novo?
R. Não me arriscaria a dizer que há um
movimento político muito claro. Pode indiretamente constituir-se como uma ação
afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a tensão que se criou com a
criminalização desses jovens, durante os rolezinhos, possa levar a algum tipo
de reflexão e ação política maior, mas é difícil prever. Em um livro
intitulado Cidadania
Insurgente, (o antropólogo americano) James Holston analisa o
surgimento das periferias urbanas no Brasil, particularmente em São Paulo,
apontando a discriminação contra certas espécies de cidadãos no Brasil. Esse
autor mostra como, historicamente, as formulações de cidadania elaboradas pelos
mais pobres se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas periferias das
grandes cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se produziram, ao
mesmo tempo, por meio das experiências de tornar-se proprietário, de participar
de movimentos sociais por melhorias dos bairros e de ingressar no mercado
consumidor. Primeiro se ocupou os bairros, mesmo sem estrutura mínima. Depois,
ocorreram as reivindicações pela legalização dos terrenos ocupados. E, enfim,
vieram as lutas pela chegada da energia elétrica, saneamento básico e asfalto.
Acho sempre muito interessante, em conversas com lideranças antigas dos bairros
periféricos de São Paulo, observar que elas indicam a chegada do asfalto como o
grande marco de transformação do bairro e a integração deste ao espaço urbano.
Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos, do ponto de
vista dessa “cidadania insurgente”, referindo-se a associações de cidadãos que
reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande discurso
hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao menos provocam
ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania, participação política
e direitos que, historicamente, foi feita na marra, pelos mais pobres, muitas
vezes nas costuras entre o legal e o ilegal, e que começou com a própria
ocupação dos bairros na periferia da cidade de São Paulo, como forma de habitar
e sobreviver no mundo urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta
como resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao
hegemônico, produzindo dissonâncias.
O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não essa
reivindicação dos jovens mais pobres por maior participação na vida social mais
ampla pelo consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica, que
não necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta se
afirmar pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído extremamente
irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma prática de
segregação dos que consideram como seus “outros”.
P. Como definir este desconforto? O que
são os “outros” neste contexto? E que papel estes “outros” desempenham?
R. O desconforto em ver pobres ocupando
um lugar em que não deveriam estar, como o de consumidores de certos produtos
que deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de espanto, que indaga: “Como eles,
que não têm dinheiro, querem consumir produtos que não são para a posição
social e econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados “subalternos”.
Podem ser funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas podem ser também as
empregadas domésticas, os motoboys, os pichadores, entre outros “outros”, que
muitas vezes são utilizados como bode expiatório das frustrações de uma parcela
considerável da classe média.
Há uma tendência de perceber os jovens
pobres a partir de três perspectivas: a do bandido, a da vítima e a do herói.”
Os rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo,
mas afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos templos do
consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros periféricos, negros e
pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical considerado marginal, eles
passam a ser vistos e classificados pela maioria dos segmentos da sociedade
como bandidos ou marginais. Vamos pensar que, na própria concepção do shopping,
não está prevista a presença desse público, ainda mais em grupo e fazendo
barulho. Pergunto-me se fosse em um shopping mais nobre, com jovens brancos de
classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste estrato social se
vista, se a repercussão seria a mesma, se a criminalização seria a mesma.
Talvez fosse considerado apenas um flash
mob. Há uma tendência, por parcela considerável da classe média, da
mídia e do poder público de perceber os jovens pobres a partir de três
perspectivas, quase sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a do
herói.
P. Como funcionam estas três
perspectivas – bandido, vítima e herói?
R. São muito mais formas de
enquadrar esses jovens por aqueles que querem tutelá-los do que categorias
assumidas pelos próprios jovens. Por isso, são contextuais. Dependendo da
situação e dos atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser entendido a
partir de uma dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um agente que pode
mobilizar todas essas classificações, dependendo do contexto e dos
interlocutores: a polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores acadêmicos
ou a ONG que quer salvar os jovens da periferia da violência. No caso do funk,
por exemplo, já há comentários e mesmo textos de pessoas mais politizadas vendo
os rolezinhos como uma ação afirmativa ou extremamente contestatória. Para
estes, os protagonistas dos rolezinhos são vítimas que se tornaram heróis.
Outros, como a polícia, a administração dos shoppings e a clientela, mas também
seus vizinhos, que moram lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles
principalmente vilões e mesmo bandidos.
Jovens como estes que estão nos rolezinhos não necessariamente
aceitam se encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem também se
encaixar em todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um fenômeno como
este. Porém, se pensarmos esse movimento que surge principalmente com o hip
hop, de valorizar a periferia como espaço político e de afirmação positiva, é
possível ver, sim, ainda que em menor intensidade, uma certa ação política. De
dizer: “Somos da quebrada e temos orgulho disso”. Um movimento de reversão do
estigma em marca positiva.
P. Mas há, de fato, uma ação consciente,
organizada, com um sentido político prévio? Ou o sentido está sendo construído
a partir dos acontecimentos, o que é igualmente legítimo?
R. Olha, sinceramente, é difícil dizer
se há um sentido político, direto, consciente e/ou explícito. Talvez por parte
de alguns, mas pelo que vi nas redes sociais, não da maioria. Se o movimento
persistir ou tomar outras formas, pode ser que tal sentido político fique mais
forte. Por enquanto é difícil analisar esse ponto. O antropólogo (indiano)
Arjun Appadurai analisa há algum tempo as mudanças que se processam no mundo
por causa do avanço das tecnologias de comunicação e de transporte. Segundo
este autor, as pessoas cada vez mais se deslocam no mundo atual, e não apenas
fisicamente, mas também e talvez principalmente pela imaginação, por causa de
meios de comunicação como a televisão e, mais recentemente, pela internet. Hoje
é possível imaginar-se nos mais diferentes lugares do mundo, mas também em
diferentes classes sociais. O que são os videoclipes de funk da ostentação que
não imagens/imaginações que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a
outra classe social ou possuir melhores condições econômicas para o consumo?
O que são os videoclipes de funk ostentação
que não imagens que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a outra
classe social?”
Essa imaginação, segundo esse autor, pode constituir-se como um
projeto político compartilhado, mas pode também ser apenas uma fantasia, como
algo individualista e egoísta, sem grandes potenciais políticos. Parece-me que
o funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o dos rolezinhos nos
shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil saber se alguma delas
irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.
P. A escolha da música do MC Daleste,
assassinado num show em Campinas, para o rolezinho promovido no Shopping
Internacional de Guarulhos, pode ter um significado a mais?
R. A escolha da música do MC Daleste na
entrada dos jovens no shopping de Guarulhos me pareceu bastante significativa,
por vários motivos. Principalmente, porque a morte dele no palco, cantando
funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da ostentação. O seu
assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta vertente do funk
paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa relação confusa
entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante forte no que o MC Daleste
representa. Há no seu próprio nome artístico essa afirmação de um certo orgulho
do lugar de onde vem e de ser da periferia, que tanto o funk quanto o hip hop
expressam. Não é por acaso que ele é “Da Leste”. Lembremos que Guarulhos também
está à leste da Região Metropolitana de São Paulo.
P. Hoje, uma parte significativa da
geração que se criou nas periferias com movimentos contestatórios como o hip
hop e a literatura periférica ou marginal tem, pelo funk da ostentação,
assumido os valores de consumo das classes médias e alta. Como você analisa
este fenômeno e o insere no contexto histórico atual do Brasil?
R. O que um evento como esse parece
evidenciar é, por um lado, esse anseio por consumir e por afirmar-se pelo
consumo que esses jovens vêm demonstrando já há algum tempo, pelas letras dos
funks, mas que também já é visto no hip hop. Apesar das críticas de certos
segmentos do hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com o hip hop mais
politizado dos anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas possíveis
continuidades a esse movimento cultural. Parece-me que o funk ostentação é uma
releitura paulista, muito influenciada pelo hip hop, do funk carioca. Muitos
MCs de funk eram MCs de hip hop, muitos deles, além dos funks, cantam também
raps, e músicas dos Racionais são ouvidas nos shows. Trechos de letras de
músicas dos Racionais podem ser encontrados facilmente nas letras do funk.
Agora, o fato é que o funk não é tão marcado pela questão política como o hip
hop. O Montanha, de Cidade Tiradentes, disse-me algo interessante, certa vez,
de que, na verdade, o hip hop ofereceria um espaço de expressão política que faltava
aos jovens, já o funk é um espaço de lazer e de sociabilidade. Parece-me uma
reflexão interessante. Não que o hip hop não possa conter lazer e sociabilidade
também, nem o funk, protesto político, mas que as duas vertentes tendem para um
dos polos. O funk, aliás, ganhou esse grande espaço junto aos jovens das
periferias de São Paulo porque, nessa articulação de um espaço de lazer,
configurou-se um espaço para as mulheres que, no hip hop, era mais difícil. As
mulheres são presença fundamental nos bailes funks. O protagonismo da dança
sempre foi delas. Ainda que os meninos também dancem e as meninas participem
cada vez mais como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino, da dança ao
estilo de se vestir.
P. Mas qual é a diferença, na sua
opinião, entre a forma como, por exemplo, os Racionais falam em consumo e os
MCs da ostentação falam de consumo?
Devemos questionar não a ação dos meninos,
mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade que se pautam cada vez
mais pela busca do reconhecimento pelo consumo, pela posse de bens.”
R. Há aí duas perspectivas. Quando digo
que os Racionais já cantavam isso, quero dizer que eles já identificavam essa
necessidade de consumir da juventude. E de consumir o que eles achavam que era
bom, nada de consumo consciente. Por isso digo que os Racionais já faziam, há
mais de dez anos, uma leitura desse anseio por consumir dos jovens pobres. Por
outro lado, há essa dimensão de movimentos como o dos escritores da periferia,
promovendo produtos da periferia, pela periferia. O funk ostentação começa sem
se preocupar com essa questão diretamente. Ele não tem dor na consciência por
cantar o consumo em suas músicas e aderir ao sistema, por exemplo. Porém,
indiretamente, se acaba chegando a um outro ponto, na medida em que uma parcela
considerável de jovens da periferia passa a possuir algum tipo de renda com a
produção do funk. Sejam os meninos que gravam os videoclipes, os próprios MCs,
mas também empresários, produtores, técnicos e mesmo alguns MCs tornando-se
empreendedores e criando seus próprios negócios. Como o MC Nego Blue, que
observando de perto o sucesso das roupas de grife entre os jovens, criou a
Black Blue, uma loja de roupas cujo símbolo é uma carpa colorida. Hoje, além de
possuir lojas próprias, já vende suas roupas em lojas multimarcas, ao lado de
camisas da Lacoste ou de outras marcas famosas que os meninos procuram, e por
um preço muito parecido. Uma das empresas que agencia shows de funk em Cidade
Tiradentes chama-se justamente “Nóis por nóis”.
Os rolezinhos parecem dizer: não apenas queremos consumir, mas
queremos ocupar em massa e se divertir aí nos seus shoppings, nos seus ou nos
nossos. É importante perceber também que os shoppings onde os eventos ocorreram
estão em regiões mais periféricas, provavelmente próximos ao próprio bairro de
moradia dos jovens. Por enquanto, eles não têm ido aos templos maiores do
consumo de luxo na cidade, na região dos Jardins, Faria Lima, Marginal
Pinheiros etc. Pode haver aí também um componente de um termo que surgiu muito forte
para mim na pesquisa que fiz em escolas de ensino médio, no meu doutorado, que
é a ideia do “zoar”. Eles querem zoar, que é chamar a atenção para si e se
divertir, namorar, brincar e, se for preciso, brigar.
P. Por que, neste momento, o lazer se
impõe como uma reivindicação desta geração, acima de questões como saúde,
educação e transporte de qualidade?
R. Acho que não há uma reivindicação
política bem formuladinha como acontecia com o hip hop: queremos mais saúde,
educação e lazer. Eles simplesmente querem estar nos shoppings para zoar e vão.
Não há essa reflexão mais elaborada que o hip hop produz, é mais espontâneo.
Esse talvez possa ser um ponto de distinção. E o próprio funk é, por si só,
lazer e diversão, um dispositivo poderosíssimo para dançar e motivar paqueras.
O zoar pode ser lido como um ato político, mas não me parece intencional. Acho
que cria uma tensão que é política, que é de disputa de poder pelos espaços da
cidade, mas não há um manifesto pela zoeira ou pelos rolezinhos, como houve, por
exemplo, no caso do manifesto da arte periférica dos escritores.
P. Há também um movimento maior para
sair dos guetos e ocupar os guetos da classe média? Em massa e não mais
individualmente, como quando um grupo de rap aparecia numa TV, mesmo sendo a
MTV, ou um escritor do movimento literário marginal ou periférico publicava
numa grande editora? Esta é uma novidade importante?
R. Acho que abre, sim, para fora do
gueto, do bairro onde se vive, mas não para muito longe, pois, afinal, os
shoppings para os quais eles vão estão do lado de suas casas. Neste sentido,
acho que o hip hop, apesar de falar mais do gueto, abre-se muito mais para fora
do gueto, na medida em que conquista um espaço importante nas políticas
públicas de cultura, por exemplo.
É como se a sociedade dissesse: ‘Vocês,
pobres, podem consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e
cantar funk, aí já é vandalismo’.”
Claro que esse espaço de lazer é problemático e conflitivo mesmo
dentro dos bairros das periferias onde moram esses jovens. Se entrevistarmos os
seus vizinhos, certamente a maioria vai se posicionar totalmente favorável à
proibição das festas de rua que eles organizam, com som alto que muitas vezes
toma a madrugada toda. Por isso, acho importante não tomar o funk nem como um
movimento libertador, nem como o grande vilão ou o grande movimento de
corrupção da juventude contemporânea, como setores mais moralistas, à esquerda
e à direita, tendem a fazer.
A questão do consumo também me parece problemática. O desejo
pelo consumo sempre existiu. Bem antes do governo Lula, o processo de
urbanização induz a esse apego maior ao consumo. Porém, não dá para se negar
que houve, nos últimos anos, também uma melhora econômica para segmentos que
antes estavam bastante afastados do mercado. Porém, acho que reduzir o sucesso
do funk da ostentação a isso é simplificar demais o movimento e esquecer que
ocorreram e ocorrem movimentos juvenis parecidos em outras partes do mundo,
como o próprio gangsta rap, nos Estados Unidos, no qual os videoclipes se
inspiram.
Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações
sociais fomentadas na contemporaneidade. É preciso conceder aos jovens, e não
apenas aos pobres, mas aos de classe média e alta também, outros espaços de
reconhecimento e de estabelecimento de relações sociais que não sejam pautados
pela afirmação por meio da posse e do consumo de bens. Porque, afinal, como
dizem os Racionais, mais uma vez: “Quem não quer brilhar, quem não? Mostra
quem. Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém”. De repente, para alguns, ter um
tênis caro, um smartphone de última geração ou ir ao shopping para zoar, pode
ser uma forma encontrada para tentar brilhar.
P. Ao ocupar os shoppings, os adeptos do
funk da ostentação estariam promovendo sua primeira atitude de insurgência
contra o sistema, no sentido de: “Vou ocupar o espaço que me é negado ou onde
não me querem”. É isso? Ou as próprias letras das músicas, interpretadas, em
geral, como adesão ao sistema, já seriam, de fato, uma insurgência, na medida
que se apropriam, simbolicamente, dos valores da elite e da classe média e, agora,
com os rolezinhos, também de seus espaços físicos?
R. Sim, acho que essa é a maior
irritação da classe média com esses movimentos. Basta ver os comentários aos
videoclipes no YouTube, irritados com os meninos ostentando e exibindo-se com
produtos mais caros, que não deveriam estar com aqueles meninos, pobre e
negros, em sua maioria. Esta é a principal insurgência que eles provocam. A
classe média, de uma maneira geral, a mais pobre ou a mais rica, a mais ou
menos intelectualizada, irrita-se bastante quando os subalternos compram bens
caros, mesmo antes deles. Já ouvi comentários indignados, do tipo: “Minha
empregada comprou uma televisão de última geração, melhor do que a minha”. Isso
tem antecedentes históricos que parecem refletir até hoje. James Holston, ainda
no livro sobre cidadania insurgente, que citei anteriormente, traz como exemplo
a legislação colonial portuguesa, que proibia aos negros o uso de joias e
artigos considerados finos...
P. Parece que os “rolezeiros” dos
shoppings estão ocupando o mesmo lugar simbólico dos “vândalos” nas
manifestações, na narrativa feita por parte da grande mídia e pelas autoridades
instituídas. Como você interpreta essa reação?
Os comentários em sites e redes sociais
revelam esse profundo racismo entranhado em parcela considerável da população
brasileira.”
R. O que me assustou de verdade nessa
história toda foram as reações, de mídia e de polícia, condenando e mandando
prender, mesmo em casos em que disseram que não houve arrastões, mas correrias.
Fico questionando quem provocou a correria: os jovens ou a ação dos seguranças
e da polícia? Eventos como estes revelam também uma faceta complicada e
extremamente preconceituosa da classe média brasileira. Dei uma entrevista
curta para o site de um grande grupo de comunicação e fiquei assustado ao ler
os comentários dos leitores, de um ódio terrível contras os meninos e meninas
que foram aos shoppings, contra os pobres, contra mim, que tive uma fala
dissonante na entrevista, ressaltando a forma preconceituosa com que tal tema
vinha sendo tratado. Ao falarem do evento, algumas palavras utilizadas como
categorias de acusação contra os jovens e as jovens foram bastante reveladoras
do preconceito, e mesmo do racismo, deste segmento social: “favelados”,
“maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Nesse último caso,
inclusive, fica evidente o racismo que aparece em muitos comentários dessa
notícia, mas também nas comunidades dos rolezinhos que os jovens criaram nas
redes sociais. Um dos comentários pede para que os jovens voltem para a África.
Isso é muito grave. Revela esse profundo racismo entranhado em parcela
considerável da população. Como se tal sociedade dissesse, por meio dos
representantes dos shoppings, da mídia e da polícia, brincando um pouco com a
questão das manifestações de junho: “Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao
shopping em grandes grupos, só para zoar e cantar funk, aí já é vandalismo”.
P. A classe média é racista?
R. O que chamamos de classe média não é
um todo homogêneo. É possível segmentá-la em diferentes níveis e a partir de
diferentes contextos, é possível pensar em uma classe média intelectualizada ou
não intelectualizada. Contudo, parece-me que a divisão mais importante para se
pensar a classe média em São Paulo é a que se dá por critérios socioeconômicos
e espaciais. Há a classe média que está concentrada principalmente no entorno
do eixo central, que vai do Centro a Pinheiros, passando pela Avenida Paulista
e bairros próximos. Esta, em sua maioria, vive numa bolha e tem poucos contatos
com outras classes sociais, com exceção dos trabalhadores subalternos:
porteiros, empregadas domésticas etc. Para esta, em grande medida, o Shopping
Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.
Porém, há também certa classe média baixa que vive na periferia.
Citando novamente o Holston, ele fala de uma diferenciação que se produziu nas
periferias de São Paulo entre aqueles que compraram seus terrenos, ainda que
por meio de contratos obscuros, e aqueles que ocuparam os espaços da cidade,
formando as favelas. Essa pequena diferença não cria um grande abismo
econômico, mas produz uma profunda diferenciação, por meio do qual um grupo
estigmatiza o outro. Já vi um indivíduo desta classe média da periferia
questionando programas como o bolsa família, porque tinha visto potes vazios de
iogurte no lixo da favela. Este indivíduo afirmava que nem ele consumia iogurte
com tanta frequência, como eles se davam ao direito de consumir tal produto,
que era um luxo, raro, mas sobre o qual ele detinha certa exclusividade?
A questão do auxílio aos mais pobres, principalmente o bolsa
família, é um forte fator de estigmatização por parte desses diferentes
segmentos da classe média, mas principalmente por parte dessa classe média da
periferia. Estive, recentemente, em uma escola pública próxima a uma grande
favela de São Paulo. Segundo os professores, um dos problemas daquela escola
era o fato de que 90% dos alunos vinham da favela vizinha. E que, hoje, esses
alunos estavam muito acomodados, pois viviam de bolsas e na favela tinham tudo
muito fácil, com a grande quantidade de projetos presentes por lá. Inclusive,
projetos de música, ressaltou um professor. É muito importante refletir sobre
isso, porque esses professores, se não moram na favela, são vizinhos dela. Mas,
ainda assim, permitem-se diferenciar-se dos jovens por questões muito pequenas.
E são estes professores os responsáveis por formar esses jovens. Será que, com
este olhar, são capazes de lutar para que a escola se torne um espaço de
convivência, afirmação e reconhecimento para os jovens?
P. Como você, que tem acompanhado o
cotidiano de escolas públicas, em São Paulo, percebe a educação?
Para uma parcela da classe média de São
Paulo, o Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.”
R. É necessário pensarmos em uma
educação para as diferenças, para que não caiamos mais na armadilha da
intolerância e das análises apressadas e preconceituosas de setores das elites
e das camadas médias, ao se referirem aos “subalternos”. Lembro-me de um
documentário português, que vale a pena ser assistido, sobre a história de um
arrastão que não existiu. Chama-se: “Era uma vez um arrastão” (assistaaqui ).
Nele, conta-se do dia em que jovens caboverdianos ou descendentes de
caboverdianos resolveram frequentar a nobre praia de Carcavelos, em Portugal. A
polícia, ao ver a concentração de jovens de origem africana, assustou-se e
resolveu intervir, provocando uma grande correria, que foi noticiada como
arrastão. Mas, de fato, os jovens fugiam da repressão policial gratuita. Isso
talvez nos ensine algo sobre os arrastões que estamos a criar todo dia,
criminalizando jovens pobres cotidianamente.
Quando estive pesquisando em escolas públicas da periferia de
São Paulo, era comum ouvir dos professores que, naquela escola, os alunos eram
todos bandidos ou marginais. O discurso da criminalização é efetivo e poderoso
e condena muita gente ao fracasso escolar e mesmo ao crime. O sociólogo polonês
Zygmunt Bauman, num livro sobre educação e juventude, ressalta a necessidade
cada vez mais premente, na contemporaneidade, de desenvolvermos a arte de
conviver com os estranhos e a diferença. Em especial num mundo no qual as
migrações tendem a aumentar cada vez mais. No nosso caso, não foi preciso a
chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de
preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros. Mas brasileiros
que moram muito, muito distante, ainda que vizinhos. Moram em Guaianazes, Capão
Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...
P. Em que medida, na sua opinião, os
rolezinhos se ligam às manifestações de junho?
R. Acho que não há uma ligação direta.
Mas, indiretamente, é possível perceber a reivindicação comum do uso do espaço
público e de quebra das marcas da segregação. Lembro-me que, antes das
manifestações de junho, para a imprensa conservadora era um tabu ocupar a
Avenida Paulista. Os movimentos sociais mostraram que não apenas não era um
tabu, como era um direito, o direito de ir às ruas e ocupá-las para protestar.
Os rolezinhos não parecem ter uma pauta tão clara, mas também estão, ainda que
indiretamente, dizendo: “Vocês não disseram que era bom consumir? Pois bem, nós
também queremos!”
P. Essa ocupação de espaços que
supostamente pertenceriam a “outros”, tanto no caso das manifestações como no
caso dos rolezinhos, parece marcar uma novidade importante. O que está
acontecendo?
R. Acho que a novidade está
aí, mas é difícil dizer o que está acontecendo ou o que acontecerá. Pode ser
apenas um surto – algo parecido com o que foi a revolta da vacina como reação
às propostas políticas opressoras de reforma sanitária do Rio de Janeiro, por
exemplo – ou pode ser uma nova forma de pensar os espaços públicos e privados
nas cidades brasileiras. Porém, é difícil prever. Os rolezinhos podem ter
acabado nesta semana, por exemplo. E movimentos como os de junho não se
repetiram com tanta intensidade e repercussão. Contudo, o que movimentos como
estes garantem é a possibilidade de se tensionar essa ocupação dos espaços
urbanos, amplamente negada até então.
Aqui não foi preciso a chegada de
estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os
estrangeiros éramos nós, os brasileiros que moram em Guaianazes, Capão Redondo,
Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia...”
P. Por que este nome, rolezinho? E que
significados ele contém?
R. Rolezinho é um termo que está
diretamente ligado à ideia de lazer. De sair para se divertir e usufruir da
cidade. Os pichadores, com os quais realizei pesquisa no mestrado, também usam
a ideia de rolê, para se referirem às suas pichações. Com isso estão dizendo
que pichar é dar voltas para conhecer e se apropriar da cidade. Parece que, por
este termo, indiretamente, podemos entender uma reivindicação pelo direito de
se divertir na cidade.
P. Divertir-se na cidade não seria um
ato de insubordinação para jovens pobres e negros? Talvez até o maior ato de
insubordinação?
R. Sim, principalmente numa sociedade em
que pobres e negros têm que trabalhar – e apenas trabalhar – sem reclamar.
Lembremos de que a ROTA, no final do regime militar, atuava nas periferias
abordando os moradores e cobrando-lhes a carteira profissional como prova de
que eram trabalhadores e não vagabundos. Devotados, portanto, ao trabalho e não
à diversão. Agora, claro que esses jovens não estão pensando exatamente nisso.
Querem muito mais é se divertir.
P. Como entender este fenômeno, que é,
ao mesmo tempo, uma insubordinação e uma adesão ao sistema?
R. Acho que a melhor palavra
é paradoxo. O funk da ostentação em São Paulo é paradoxal: não dá para situá-lo
num polo ou noutro, dentro do modo tradicional de pensar a política.
Conservador ou revolucionário? Nenhum dos dois, mas com possibilidade para os
dois ao mesmo tempo.
Eliane Brum é escritora, repórter e
documentarista. Autora dos livros de não ficçãoA Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua e A Menina Quebrada e
do romance Uma Duas.
Email: elianebrum@uol.com.br .
Twitter: @brumelianebrum
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