domingo, 15 de junho de 2014

pra não dizer que não falei de futebol

O futebol, não há dúvida, tem como principal combustível a paixão o que não significa que ele possa, e por vezes deva, ser racionalizado.
A literatura tem sido prodigiosa com o tema. José Miguel Wisnik escreveu o ótimo "Veneno Remédio", editado pela Cia. das Letras. Há um livro que sempre recomendo que é o "Cuentos de Futbol Argentino", uma seleção deliciosa de contos organizados por Roberto Fontanarrosa e editado pela Alfagarra, até onde sei, sem, ainda, a tradução para o português. São 18 contos, dentre eles os de José Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. É ótimo também "Futebol, ao Sol e à Sombra", de Eduardo Galeano editado pela LPM. Cito por fim, um grande estudo do historiador medievalista Hilário Franco Júnior, "A Dança dos Deuses, Futebol, Sociedade e Cultura" (Cia. das Letras), de onde fisgo dois trechos: "Torcer supõe alterar a configuração de um evento, moldar psiquicamente um fato para adequá-lo ao espaço do desejo", e, "No futebol, o vencedor comemora e o perdedor justifica. Como na vida. Entretanto, o futebol apresenta um fator positivo do ponto de vista psicológico: cada partida, cada temporada, oferece a esperança de um novo recomeço. Reescrever periodicamente o script da vida só é possível no futebol".

Feito este preâmbulo, vou à razão desta postagem: a abertura da Copa do Mundo.
Houve tempo, muito tempo para que fosse produzido algo que nos representasse, não só simbólica e culturalmente, como também pela capacidade de realização. Não sei qual foi a interferência da Fifa neste evento de abertura, mas o que se viu foi uma estereotipia vesga, fantasiada de samambaia, que faria Joãozinho Trinta, se vivo fosse, rubro de vergonha. O ápice do imbróglio, se deu quando, na abertura da bola incandescente, surgiu aquela que representou a nossa musicalidade. Para um país que produziu Villa Lobos, Chiquinha Gonzaga, Guiomar Novaes, Nelson Freire, Pixinguinha, Noel Rosa, Cartola, Elis,Tom, Vinícius, Gismonti, Gonzagão, Gonzaguinha, Caymmis, Chicos, Gils, Caetanos, Bethanias, Claras, Naras, samba, chorinho, frevo, maracatu, baião, xaxado e muito mais, fomos representados por uma escolha da indústria cultural. Mas isso não bastava. No meio de tamanha bagunça, ficou escondido aquilo que deveria ser o ponto máximo do evento: o caminhar e o pontapé inicial de Juliano Pinto, paraplégico, usando o exoesqueleto criado pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis. Parece ser sintomático, nesse caldeirão, que Nicolelis ficasse renegado.
Depois tivemos a apresentação, emocionante, para muitos, do patriotismo com hino brasileiro cantando à capela e regado pelas lágrimas do nosso goleiro e dos nossos zagueiros. O culto à nação, representado pela "pátria de chuteiras" alcançou outro patamar, não com as vaias, democráticas na sua natureza, mas com a agressão ignóbil, grosseira, desqualificada que uma parcela da elite, posicionada nos setores mais caros do estádio, desferiu, aos berros,  à presidenta do país. Essa elite, que tem a pretensão de se apropriar e ressignificar os nossos símbolos, cantou com toda a emoção o hino nacional e talvez com a mesma empolgação, não teve nenhum constrangimento de ordem ética com a farsa burlesca impetrada pelo nosso centroavante Fred que culminou com um pênalti que nos levaria à vitória.
De toda sorte, nas quatro linhas, depois de três dias de competição, a arte do futebol parece redimir os nossos pecados e os "idiotas da objetividade", para lembrar Nelson Rodrigues, vão ficando menores. Tão menores, que aquela caixinha, a "caixinha de surpresas", que tão folcloricamente já definiu o futebol, pode acondicionar  todos eles. 


3 comentários:

Flávio disse...

Foi no ponto! Foi tudo uma enorme vergonha!

Fabíola disse...

Boa, Cesão!

Mas não poderíamos esperar muito mais do que isso (sobre a abertura), com organização e transmissão no tão aclamado padrão FIFA de qualidade...

Mas, for favor, fale-nos mais sobre futebol... Escreva um pouco também sobre Uruguai, Costa Rica, Colômbia...

Gê Cesar de Paula disse...

Que beleza, Fá, a Costa Rica hein! e a garra uruguaia! A Copa está ótima e os que esperavam pelo pior estão frustrados.