Para tratarmos do tema, republicamos abaixo o ótimo artigo de Márcio Sotelo Felippe publicado no site Justificando, agora também nos nossos links sugeridos ao lado, na seção "jornais e afins".
por Márcio Sotelo Felippe
Nos regimes fascistas, a violência do Estado e a violação de
direitos tem apoio de massa. Rubens Casara lembrou isto neste espaço com
preciso senso de oportunidade.
É um traço característico do fascismo. O fascismo não era apenas
violência ou terrorismo de Estado, ou, como sustentavam nos anos 30 os
soviéticos, uma ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários do
grande capital. Para além disso, buscava também um determinado “consenso”,
dominar pela captura da consciência de uma parte do povo para dirigi-la contra
outra parte. Para tanto era preciso desumanizar o diferente, visando
transformar a sociedade em um organismo, de tal modo que o que estivesse fora
de um determinado padrão, fosse social, econômico, político, étnico ou de
conduta, deveria ser tratado como uma espécie de “doença” do meio social e
portanto aniquilados ou completamente subjugados.
(continua em "mais informações")
Esse domínio de novo tipo era uma reação ao bolchevismo. Pela
primeira vez um Estado extinguia a propriedade privada dos meios de produção e
conseguia manter essa estrutura, diferentemente da Comuna de Paris, que pouco
durou. Os instrumentos clássicos de domínio político pelo uso da força quando a
ordem burguesa era ameaçada podiam não ser suficientes. Era preciso mais, era
preciso tornar a sociedade um todo “harmonioso”, era preciso dominar desde logo
a partir da consciência.
Assim, na Alemanha nazista, o regime mais clássico e
aperfeiçoado de fascismo, o mal, a “doença social”, eram os comunistas, os
judeus, os homossexuais, os ciganos, as pessoas com deficiência, mas também
qualquer indivíduo cujas convicções ou modo de ser representassem uma ameaça à
ordem burguesa. Na sociedade ideal nazista só haveria um tipo étnico, uma
convicção política, uma espécie de ser humano “purificado”, uma sexualidade e
somente uma visão de mundo.
A forma de dominação fascista consistia, pois, além da violência
do Estado, nisto de levar uma parte da sociedade a odiar a outra e vê-la como
ameaça a si e ao bem-estar social. Além de ser uma forma absoluta de dominação
porque ia diretamente à consciência, legitimava toda sorte de violência,
arbitrariedade e violação de direitos para a exclusão social do diferente ou
sua aniquilação. Para que um cenário desse tipo se consolide é preciso uma
maciça propaganda e doutrinação em que a matéria-prima é o ódio social.
É isto que se vê na sociedade brasileira hoje. A tragédia do
fascismo com seu componente necessário de ódio social. Em maio de 2013, um
seminário realizado pela EMERJ (Escola da Magistratura do Rio de Janeiro) já
debatia o processo de fascistização que despontava e que agora atinge patamares
intoleráveis. Na mesma ordem de conceitos que desenvolvi acima, transcrevo aqui
uma parte de minha intervenção naquela ocasião e remeto o leitor ao volume 67
da Revista da EMERJ:
“Sempre que de algum modo o diferente é tratado como inimigo,
excluído do povo, desqualificado em sua humanidade, associado a desvalores,
mau, falso, injusto por natureza, sujo, sempre que alguém procura uniformizar o
meio social como um organismo por tal método, estamos diante de uma atitude
fascista. A chave é essa: alguns são “o povo” e devem ser protegidos; outros
não são o povo, não tem direitos e podem ser excluídos, seja pela violência,
seja pelo Direito, seja pelo Estado” [1].
Para tudo isto é preciso a matéria-prima do ódio. O fascista é
antes de mais nada um ser que odeia. Constrói-se um fascista fazendo com que o
seu descontentamento econômico, o seu ressentimento social e a sua
contrariedade transformem-se em ódio contra tudo que ele pensa ser uma ameaça à
sua condição ou ao que o seu imaginário representa para si mesmo. É por isso
que o fascismo grassa nas camadas médias, perdidas entre o pavor da
proletarização e o anseio de ser burguês de verdade.
Por força do ódio multiplicam-se as manifestações de
intolerância contra o excluído que ascende socialmente, contra quem expressa
sua sexualidade de forma diferente de certo padrão que se supõe “normal”,
contra quem milita em favor de outra estrutura social e é identificado como a
esquerda. Multiplicam-se as manifestações de ódio contra tudo que é diferente
da ordem social burguesa branca.
Mas neste específico momento chega ao ápice a intolerância
contra a esquerda, que a doutrinação genericamente denomina como “petismo”.
Uma mirada nas manifestações de 13 de março permite ver
claramente esse processo de fascistização: o inimigo, a doença que precisa ser
exterminada para que o organismo social seja saudável tem o nome de petismo.
Como o ódio suspende os juízos racionais, pode-se criar no imaginário das camadas
médias um ser irreal, capaz de todas as perfídias, completamente mau e detentor
do monopólio da corrupção, portador de uma natureza humana degenerada. Esse ser
irreal, essa abstração desprovida de qualquer racionalidade, tornou-se concreto
representado na figura do ex-presidente Lula. Ele não é como todos os seres
humanos, dotado de algumas virtudes e alguns defeitos. Não é como todos os
outros políticos, que se pode ver com desconfiança mas tolerar. Lula é
diferente. É mostrado como a encarnação absoluta do mal.
A racionalidade instrumental do fascismo precisa do irracional
da massa. A massa branca da avenida Paulista votou por décadas em Maluf sabendo
que era corrupto, assistiu passivamente a compra de votos para a reeleição de
Fernando Henrique e não bate panelas para Cunha ou para ladrões de merendas.
Nunca se indignou diante da miséria de parte da população. A corrupção somente
movimenta essa massa branca quando contingências permitem associá-la à
esquerda; e aí se reproduz o clássico esquema fascista de dominação pela
captura da consciência, manipulação e propaganda maciça que permitem legitimar
a violência e os mecanismos repressivos. Porque contra o mal tudo é permitido e
tudo convém.
O que isto tudo significa, na verdade, é mais um capítulo da velha
luta de classes. O fascismo não é um fenômeno cultural ou singelamente
político, mesmo que contenha necessariamente tais aspectos. A sua causa reside
na luta pela apropriação da riqueza e manutenção de privilégios. O que ora está
em jogo é quem perde e quem ganha na apropriação de patrimônio e renda. Se
tiver golpe, haverá o assalto definitivo ao pré-sal, a perda da Petrobrás, a
destruição da CLT, o aniquilamento de direitos e políticas públicas de
interesse das camadas populares porque a crise diminuiu a possibilidade de
acumulação.
Nessa perspectiva, o mandato da presidenta importa pela defesa
da legalidade democrática e pela sua eficácia estratégica, nunca pelo que modo
como ela governa. Quem ganhar acumula força. E o que eles querem é dar o passo
decisivo para o domínio político e social completo, para reduzir a esquerda à
insignificância, porque é ela o obstáculo efetivo como força social. Vai ter
golpe ou não vai ter golpe significa isto: quem vai ser a força social
hegemônica nas próximas décadas.
Para a parcela lúcida e racional da sociedade é o momento de
combater o bom combate, pela justiça, igualdade e solidariedade social. No
mais, lembrando o que disse Unamuno aos fascistas, se vencerem, não
convencerão. Porque para convencer é preciso a razão. Se vencerem, em algum
momento resgataremos a razão.
REFERÊNCIAS
[1] [1]http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista67/revista67_453.pdf (Revista da Emerj, no. 67)
Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral
do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o
cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da
Verdade da OAB Federal.
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