sábado, 6 de outubro de 2012

o risco que corremos


A história da América Latina é marcada por inúmeros golpes contra as instituições democráticas, ainda que estejamos falando de democracias incipientes. Passamos pelo século 20 sempre sujeitos aos humores dos quartéis, sempre prestes a colocarem munição nos seus aparatos bélicos e os apontarem contra a população.
Na passagem para o século 21 tivemos a sensação que golpes faziam parte da nossa história, superados por constantes e persistentes processos de construção da nossa democracia.
Entretanto, as tentativas de golpe na Guatemala em 2009 e Equador em 2010 e os golpes consolidados em Honduras e Paraguai que derrubaram os presidentes Manuel Zelaya e Fernando Lugo, respectivamente, nos apontam para uma outra abordagem: que a essência conceitual dos “golpes” permanece; o que muda são as formas. Os tanques de guerra em volta dos palácios presidenciais são imagens que prescreveram. Não cabem mais nas lentes midiáticas e globalizadas que cruzam o planeta em tempo real. A arquitetura do golpe evoluiu. Ele, hoje, deve ter um caráter “democrático”, respaldado pelo aparato institucional constituído e pautado e disseminado pelos setores oligopolizados das redes de comunicação que, na América Latina, continuam nas mãos hereditárias de poucas famílias.

Um exercício plausível de se fazer é que as duas tentativas frustradas no Equador e na Guatemala, e o golpe bem sucedido em Honduras, ainda que a trancos e barrancos, serviram de laboratório para o êxito do golpe no Paraguai.
O risco e a preocupação evidentes, é que se module nos bastidores dos poderes paralelos, uma disseminação no continente de um certo, e novo, modus operandi do golpe. A base para isso existe, e são as nossas democracias ainda não firmemente constituídas.


A mídia que temos



Em 2005 tínhamos, além das novelas da sete e das nove, a novela das oito, com o nome de “Mensalão”. Hoje temos a segunda edição da mesma novela, agora com cenário mais pomposo e, da mesma forma, com um roteiro composto pela espetacularização, mas com outros cuidados. A agenda do julgamento da Ação Penal 470, o Mensalão, foi tão milimetricamente calculada que, mais do que ter sido aberta paralelamente às eleições municipais, culminou com o julgamento de José Dirceu exatamente no momento de fechamento das campanhas pelo primeiro turno. Os relógios do STF, do TSE e do Jornal Nacional foram acertados conjuntamente. Em 1997, todos sabemos, houve compra de deputados para a aprovação da reeleição de FHC. Ao contrário da Ação Penal 470, há provas cabais do comércio, mas o STF não a julgou. “A compra de votos para a reeleição de FHC” não recebeu um nome de impacto publicitário da imprensa, como por exemplo “Mensalão” e acabou esquecida.
Mas há outras tantas coisas que a imprensa também esquece, ou prefere não revelar. É necessário que se faça pesquisas para saber que a Federal Communications Commission (FCC), órgão regulador da área de telecomunicações e radiodifusão dos Estados Unidos fechou entre 1937 e 1987, 141 concessionárias de rádio e TV e em 40 delas, nem esperou que acabassem o prazo da concessão. Nunca foi mencionado por aqui que a indefectível Margareth Thatcher também cancelou concessões, em alguns casos por tentativa de formação de monopólio. O mesmo fizeram, sem nenhum contratempo, a França, o Canadá, a Espanha entre outros tantos países de democracias consolidadas. Leis de concessões e suas aplicações para a área de comunicação, fazem parte de qualquer país democrático. Democracias consolidadas pressupõem processos de construção de instituições sólidas e de uma imprensa responsável e plural. Na adolescência em que vivemos, as famílias que comandam o conglomerado de comunicação no Brasil, se irritam quando alguém, inadvertidamente, ousa afirmar a necessidade da “democratização dos meios de comunicação” e encontram nas figuras de Hugo Chavez e Cristina Kirchner os demônios a serem combatidos, em nome da “liberdade de expressão”.
A tarefa urgente desta mídia de pensamento único, neste momento, é pautar o Superior Tribunal Federal, envolto com a Ação Penal 470.
O STF que temos

O tribunal máximo da nação tem se esmerado em dar uma resposta contundente e rápida – como dissemos, respeitando o calendário eleitoral - aos anseios da sociedade que a mídia, essa que temos, tem propagado. E para tanto, tem criado, sobretudo na figura do seu relator, novas formas de entendimento da análise de uma ação penal, que é a de criminalização por indícios e não por provas. O exercício de retórica da maioria dos seus membros produz um contorcionismo por vezes extravagante, perceptível até mesmo na apreciação dos leigos. Vale até recuperar peças não tão em voga no universo jurídico atual, como a que vimos, sobretudo nesta semana, que é a tal da “Teoria do Domínio de Fato”. Rastreando aqui e ali sobre o entendimento de inúmeros juristas, percebemos que, com ela, José Dirceu será condenado mesmo que, em tese, não tenha nenhuma ligação com os casos tratados no julgamento. Ele será declarado culpado, se não por outra razão confirmada, mas porque exercia cargo de chefia. O que já tínhamos de fato, é que a imprensa, essa que temos, já tinha dado o seu veredicto. O STF apenas o confirmará. Durante o processo, o Jornal Estado de São Paulo chegou até a antecipar o texto do voto de um determinado juiz, o que fere completamente a liturgia do cargo. O Procurador Geral, Roberto Gurgel, declarou que "será salutar se o julgamento do mensalão tiver impacto nas eleições".
Rasgadas as hipocrisias, o STF está julgando a Ação Penal 470 de modo político e não técnico.


O risco que temos
O risco que corremos está delineado. Temos, ao contrário do que foi amplamente propagado, uma democracia ainda frágil e sujeita a determinados jogos de interesses que serão tão mais expoentes quanto ainda frágil for a nossa democracia. Escaparmos desse risco implica em sairmos deste círculo, e para tanto, há ainda um caminho sinuoso a ser percorrido.
Essa nossa mídia de pensamento único pleiteia, com os componentes de um discurso fácil e palatável, a defesa da “liberdade de expressão”.  Ora, qualquer liberdade pressupõe um objeto que incorpore o significado do que é ser livre. Que acolha, intrinsecamente, a responsabilidade da sua aplicação.
Em outro artigo neste Empório, tratei de liberdade ligada à arte, e dizia que a liberdade tem um limite, que é aquela em que o artista define a obra: a última pincelada, o último acorde. Liberdade tem sempre os seus limites. Nas regras de sociabilidade, eu não sou livre para, limpando a minha casa, jogar a minha sujeira na casa do vizinho. A imprensa não pode se arvorar do vasto conceito de “liberdade de expressão” para macular, indiscriminadamente, a vida de alguém, por exemplo, e, tão pouco, pode escolher um oponente e tratá-lo como inimigo, desconsiderando os ditames mais elementares da ética jornalística. A presidente Dilma, fez uma interessante síntese do que estamos abordando. Disse ela: " A multiplicidade de pontos de vista, a abordagem investigativa e sem preconceitos dos grandes temas de interesse nacional constituem requisitos indispensáveis para o pleno usufruto da democracia, mesmo quando irritantes, mesmo quando nos afetam, mesmo quando nos atingem. E o amadurecimento da consciência cívica da nossa sociedade faz com que nós tenhamos a obrigação de conviver de forma civilizada com as diferenças de opinião, de crença e de propostas." Liberdade de expressão, portanto, é um dos elementos da democracia e não pode ser confundida com liberdade pleiteada pelos donos da comunicação de poder fazer, indiscriminadamente, as suas escolhas baseadas nos seus interesses mais particulares.
Mas essas escolhas estão cada vez menos envergonhadas e, com a novela "Mensalão" e seu aparente sucesso, há indícios claros da continuação dos argumentos que irão alinhavar os novos capítulos que merecerão tentativas de colocarem outros protagonistas mais famosos: o ex presidente Lula e a atual presidente Dilma. Vivemos momentos perigosos.

A falta da essência democrática desse nosso oligopólio da comunicação, esse que temos, é, ao final, espantoso, principalmente quando esses anseios particulares encontram eco no principal tribunal jurídico do país. Um júri supremo que julga por inclinação política e não técnica é um risco que não deveríamos correr, sobretudo depois de vencermos uma etapa tão árdua que foram os anos de chumbo pelos quais passamos.
Como disse no primeiro parágrafo , me referindo aos militares, os humores de um tribunal político podem variar e amanhã poderá voltar-se contra quem tanto o bajulou.


12 comentários:

Lengo D'Noronha disse...

Caro Cesar,

Para uma tão elaborada crônica fico sem comentários. Concordo com você até até a última gota (do c. macul).

Um forte abraço!

Gê Cesar de Paula disse...

Caro Antônio, tive problemas na publicação e a última parte que eu havia alterado, eu não estava conseguindo publicar. Só agora, às 21h:40, eu consegui. Ela é bem diferente e não sei se é a versão que você leu.
Grande abraço.

Fernando disse...

A sua análise é perfeita, a melhor que li nos últimos dias. Faço apenas um apontamento. O site Wikileaks já apontava em março de 2009, a intenção da direita paraguaia de derrubar o Lugo. Havia um texto que foi enviado à Washington, que dizia que o momento ainda não era oportuno para o golpe. Veja: http://wikileaks.org/cable/2009/03/09ASUNCION189.html
Posso divulgar seu texto?

Gê Cesar de Paula disse...

Fernando, obrigado pelo apontamento e eu, com o meu inglês rastaquera pude verificar, navegando por ali, que o embrião do golpe já estava germinando. Ótima dica para as nossas pesquisas.
Obrigado.

Fabio disse...

Excelente!

Alê disse...

Muito bom, Cesar. Bom te ver ontem la na Paulista!! Nossa frágil democracia, en constante ameaça, exige mobilização permanente, nas ruas e na rede!! Parabéns!

Gê Cesar de Paula disse...

Pois é Alê, é sempre necessário estarmos atentos e a rede tem sido um bom caminho. Obrigado.

Rubens W. Jr. disse...

Cliquei num link que me trouxe até aqui no blog do Nassif. Uma ótima descoberta este Empório. Concordo com sua análise e, de fato, acho que vivemos momentos que merecem muita atenção e muita vigilância.
Sds.

Gê Cesar de Paula disse...

Caro Rubens, é esta a questão: há que se vigiar. Os rumos de uma história construída dependem dos enfrentamentos necessários. A rede, hoje, é um importante canal para a diminuição do poder concentrado dessa mídia de pensamento único que temos.
Seja bem-vindo.

Eliete disse...

Navegando por aí, caí aqui neste seu blog(coisas da rede!). Você escreveu o artigo há 1 ano e meio e hoje estamos vendo o chamado "mensalão" se desmanchando. É, como você disse, uma novela. Só espero que as evidências da farsa sejam o suficiente para desmascarar toda essa pantomima. Urgh! Que raiva que dá!

Gê Cesar de Paula disse...

É isso Eliete. Aquilo que já desconfiávamos muito na época, vem se revelando em uma ficção muito elaborada. Mas isso não resolve o problema. Enquanto for possível manter essa farsa como se verdade fosse, estaremos sujeito a manipulações da mídia e de um STF político que fará de tudo para manter as decisões que tomaram.

Fernando Melo disse...

Eu lembrei deste seu artigo no domingo, assistindo aquele circo de horrores no Congresso Nacional e fui fuçando até achá-lo. Incrível como é atual!O seu artigo é de outubro de 2012 e eu fiz um comentário no dia 08 de outubro do mesmo ano falando do Wikileaks. O que impressiona é que já havia uma trama golpista desde então. Faltava só acertar a melhor forma. Difícil aceitar, mas eu vivo numa república de bananas.